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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

[fazer de conta que está aqui um título muito, etc., bom]

pedro, 31.03.08


Quando ocorre estar postado numa fila, consigo identificar claramente a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” a mais de não sei quantos metros e com uma margem de erro tão absurda, mas tão absurda, que era escusada a própria menção de uma margem de erro. Esse tipo de criatura, a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?”, existe, apenas e só, no sentido da fomentação de sentimentos que se podem descrever como implosões interiores ao nível dos nervos, basicamente e assim. Uma vez que o homicídio em própria defesa ainda é, infelizmente, um campo muito limitado e apenas aplicável em situações bastante específicas, há que lutar contra estas criaturas com as armas possíveis. Ora, partindo-se do óbvio pressuposto de que a fuga ao extremo incómodo que a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” promove junto do receptor deve muito a uma identificação prévia da referida criatura, a importância dessa faculdade (ver primeira frase, se já se esqueceu qual é, seu monoceronte com um intervalo de atenção nulo) banha-se então, e declaradamente, num mar de incontestabilidade. Embora componente decisiva do processo, não basta a mera identificação da pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” a largos metros de distância. É necessária a aplicação imediata de uma postura de combate à pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” e à sua grande arma, precisamente o “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?”. Pessoalmente – e, relembro, depois de identificada a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” –, socorro-me de duas tácticas, que passarei a descrever. Uma requer que se tenham vestidas umas calças com fecho-éclair, a outra não requer nada, pelo menos em termos de equipamento específico. Em relação à primeira, basta referir o seguinte: assim que identificar a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?”, limite-se a baixar a cabeça e finja-se entretido a abrir e fechar o seu fecho-éclair. A pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” não ousará incomodá-lo, é garantido. A outra opção passa por centrar o olhar no seu próprio nariz, dando a nítida sensação de que é muito estrábico ou uma coisa dessas. A minha experiência diz-me que ninguém pergunta nada a estrábicos, sobretudo a quem aparente um nível de heterotropia que seja visível a uma distância considerável. Deve ser fenómeno intrinsecamente relacionado com o facto de essa gente parecer maluquinha, embora até existam alguns que andam de fato e têm estudos (ainda que nunca acima de licenciatura). Isto do estrabismo ciclópico, é, ao nível destas dinâmicas, equivalente a ter as calças ensopadas em urina – própria ou não –, uma suástica tatuada na testa, uns óculos escuros sem uma das lentes, etc., coisas dessas. Assusta, ninguém lhes pergunta, nem pede nada. Ambas eficazes, estas tácticas têm os seus pontos menos positivos. No caso da do fecho-éclair, é preciso estar com calças que possuam esse tipo de peça. Sabendo-se de antemão que setenta e oito por cento das esperas em filas se efectuam usando calças de fato-de-treino, é elevada a probabilidade de não termos o fecho-éclair necessário. Na outra táctica, o problema assenta no facto de que centrar os olhos no nosso próprio nariz fazer dor de cabeça passado um bocado; o que potencia a plausibilidade de você deixar de concentrar exclusivamente o olhar no seu próprio nariz antes da pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” reparar que você parece um daqueles malucos estrábicos. Se a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” não reparar que você parece maluco, o mais provável é você levar com o “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” dela. Qualquer uma destas tácticas é duma eficácia avassaladora, mas há que chamar a atenção para o facto de não deverem ser usadas em simultâneo, visto que é óbvia a perigosidade de manobrar o fecho-éclair tendo-se o olhar centrado no próprio nariz. Desde que soube que tinha a faculdade de identificar a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” à distância e aplicar subsequentemente uma destas tácticas de defesa, apenas por uma vez fui derrotado por uma pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” e tive que a deixar passar à minha frente para perguntar só uma coisa. Mas há que salientar que essa pessoa ““olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?”, quase no preciso momento em que a identifiquei como uma pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?”, se assoou à Futre (ver Nota Bene), eventualidade que me desconcentrou por completo e impediu a aplicação de uma das duas excelsas tácticas de defesa que tornei aqui públicas. Pessoas que se assoam à Futre são invencíveis nestas coisas dos conflitos sociais.

 

N.B.: Assoar-se à Paulo Futre é um movimento desenvolvido pelo ex-internacional português com o mesmo nome. Criado algures no encontro Portugal x Escócia de qualificação para o campeonato do mundo de 1994, este movimento exige, como condição prévia, um acumulação substancial de mucosidades nas fossas nasais, o vulgo “nariz muito entupido”. Satisfeita essa condição, a pessoa assoar-se-á à Paulo Futre, tapando uma das narinas com o dedo e fazendo uma força tremenda, tentando fazer passar ar pela narina livre (se tiver o nariz demasiado entupido e fizer muita força, poderá morrer devido a veias na cabeça explodirem). Se tudo correu bem, o indivíduo terá agora um longo fio de mucosidade pendurada, desde o nariz até ao solo, sendo que, para a fazer cair, não poderá usar as próprias mãos, camisola, ou o que for, mas, isso sim, recorrer-se apenas da locomoção; i.e., correr até que o longo fio de mucosidade caia naturalmente. Paulo Futre conseguia que tal sucedesse em duas ou três passadas, em corrida ligeira, mas acredita-se que o cidadão normal já o consiga fazer em cerca de sete, oito passadas. As condições climatéricas ideais são, evidentemente, ventos fortes e contrários. Como é ainda mais evidente, Paulo Futre não precisa de condições climatéricas ideais.

Sai daqui, que me fazes electricidade estática

pedro, 20.03.08


Antes que m’esqueça de o fazer, adianto desde já que, no meu supermercado, a mulher da secção da charcutaria (ou lá que coito de nome tem aquilo assim em termos mais técnicos) só não bufa ligeiramente – que fique subentendido que é em manifestação de desagrado, espero não ter que explicar esta questão dos bufares – quando peço acima de quatro fatias de queijo e respectivo fiambre, ou vice-versa. Se peço uma, bufa, se peço duas, bufa, se peço três, bufa, se peço quatro, bufa. Com cinco, já não bufa, mas também nunca lhe notei qualquer tipo de entusiasmo. O que também faz sempre é atirar um “é só?” para cima de mim, como se o que acabei de pedir fosse sempre pouco. Levo pouco porque não sei quanto tempo dura o queijo e o fiambre. Tenho-me como indivíduo precavido, sobretudo desde que, em tempos, comprei uns quilos de bananas em promoção. Ainda assim, ando a juntar dinheiro para tentar perceber até que ponto ela diz “é só?”, embora, logo à partida, me pareça que, se eu lhe pedir cinquenta fatias de queijo e fiambre, um “é só?” vá parecer desadequado. É quando como eu chego mais de duas horas atrasado a um encontro qualquer e as pessoas, quando me vêem chegar, dizem “já aí vem o Pedro”. Esse “já” é tão irónico, mas, enfim. Vamos esperar para ver como corre esta contenda das cinquenta fatias de queijo e fiambre. Quem achar que faço poucos parágrafos – sendo “poucos” sinónimo de “nenhum”, como é sabido –, pode imaginar que fiz um aqui e esta frase não existe. Prossigamos agora para outras matérias, com licença. Um exemplo paradigmático do expectável, ainda que por ora pouco visível, domínio da máquina sobre o homem, reside na seguinte e corriqueira dinâmica [com a qual, decerto, todos nós estaremos familiarizados]: no decorrer de um banho, a água quente conhece um considerável período de fluxo gelado porque, apenas e só, o esquentador se resolveu desligar sozinho. Perante isto, afirmam diversas entidades (o manual, a caixa e até a pessoa que sofreu com a decisão do esquentador em se desligar sozinho, entre outras) que o aparelho é “inteligente”. Em contraponto a este tratamento já de si levemente incompreensível, surge aquele que é facultado aos humanos que, mesmo quando inadvertidamente, têm o azar de parar a água quente a alguém lá em casa que estava a tomar banho, seja porque puxaram o autoclismo ou se meteram a lavar a louça de quinze dias, que entretanto foram acumulando. Com efeito, essa pessoa – chamemos-lhe, meramente para efeitos de etc., “eu” – que inocentemente interferiu com a temperatura da água do banho é, automática, invariável e inapelavelmente, apelidada de “estúpido”, adjectivação essa que, não raras vezes, vem acompanhada de um “da merda” que mais não faz senão ilustrar ainda mais um discurso já de si bastante perceptível. Até porque costuma ser aos berros e oriundo das goelas de quem acabou de levar com água gelada nas costas, ombros e cabeça (quase sempre). Portanto, temos, para acções de desfecho exactamente idêntico, reacções amplamente distintas. Uma para o esquentador, outra para o tal “eu”, um humano. O esquentador é “inteligente”, ao passo que “eu” já sou “estúpido da merda”, no mínimo. Quando analisada à luz da eterna questão da intenção, a diferença de tratamento poderá fazer algum sentido. O esquentador teve intenção de desligar a água quente a quem tomava banho, ao passo que “eu” não tive. Transporte-se, para um maior imediatismo a nível de compreensão de V. Exas., esta dinâmica para o concurso “Quem quer ser milionário?”; onde, conjecturemos, temos dois concorrentes cujo desfecho foi idêntico: escolheram a resposta certa. Porém, um deles fê-lo certo de que aquela seria a resposta correcta, enquanto que o outro disse ao calha (são quase sempre gajas). Aos olhos de todos os que acompanham o concurso, o primeiro é inteligente e o segundo é um burro que vive à base de fezadas. Cá está de novo: para acções de desfecho igual, reacções antagónicas. A intenção parece assumir carácter decisivo. Seria, então, de prever que, assemelhando ainda mais a minha acção da do esquentador, i.e., juntando-lhe o factor intencional, me iriam catalogar também de “inteligente” em vez de me metralharem com um “estúpido da, etc.”. Acontece que quando, propositadamente, faço parar a água quente do banho de alguém, é praticamente tudo igual e, ora bem, ninguém me chama inteligente. De resto, a variação foi mesmo mínima, para não dizer inexistente, tirando uma vez, que ouvi “mas tu andas a gozar com esta merda ou quê?”, o que seria de facto, e com muito boa fé, uma variação relativamente a reacções anteriores, mas não tardou até se complementar a ilusória inovação com o habitual “ó estúpido da, etc.”. Não acho justo este desfasamento em termos do conceito de inteligência entre esquentadores e pessoas, basicamente. Deixando umas breves linhas sobre um assunto em nada relacionado com o anterior, refira-se que gostaria de, ao rol de entidades que anseio por ver abatidas num feriado nacional – se possível o dez de Junho que me agrada o solinho no lombo –, as pessoas que fazem questão de abrir o chapéu-de-chuva em locais sobrepovoados. De resto, o costume.

Há, em toda a magnificência que constitui actualmente o youtube, apenas três golos do Purovic

pedro, 23.01.08


E um é ao Fátima. De resto, três descobertas mais a comunicar, e logo três cujo nível de frescura é, até certo ponto, majestoso; uma vez que foram efectivadas hoje, ou ontem, à tarde. Primeiro, e embora eu tenha uma clara psicossociopatia que m’impede d’apresentar desculpas sinceras, tenho que apresentar um sincero pedido de desculpas a todas aquelas pessoas a quem recomendei paio como a melhor coisa para pôr no pão. Afinal não é paio. É, isso sim, presunto rolado fatiado. Sempre pensei que aquilo que há mais de cem lanches meto no pão era paio, mas não é. Sendo assim, onde se me ouviu dizer “olha, mesmo, mesmo bom para meter no pão, sabes o que é? Paio!”, ouça-se “olha, mesmo, mesmo bom para meter no pão, sabes o que é? Presunto rolado fatiado!”. Ganha-se em factualidade o que se perde em musicalidade argumentativa. De notar ainda que, face a este desenrolar situacional, não faço ideia, então, que caralho é paio. Segundo, descobri que ter o bilhete de identidade caducado há meses [assuma-se simplesmente que é plural e fiquemos por aqui] e só descobrir que o está [caducado há meses] porque se foi aos correios levantar uma daquelas coisas que é preciso levar um bilhete de identidade actualizado [é esta a palavra? é o oposto de caducado que quero usar, julgo estar perceptível], é, palavras do senhor funcionário dos correios [aparentemente, formado com louvor em responsabilidade civil e rigor cívico] uma irresponsabilidade tamanha. Não sabia, fiquei a saber. Eu até tenho dois bilhetes de identidades [sim, nunca escrevo, nem digo, B.I. – há mais de sete anos que não pronuncio uma única sigla; detesto-as, e, ainda que demore mais tempo, a mim ninguém m’ouve, por exemplo, dizer P.S.P. em vez de Polícia de Segurança Pública], se bem que estejam ambos caducados. É fácil conseguir um segundo bilhete de identidade. Basta ficar convencido que se perdeu o bilhete de identidade e, se não tiver problemas em admitir que é um adulto que perde coisas [eu não tenho, e quem tiver que diga que foi assaltado ou uma dessas coisas que as pessoas que não sabem karaté costumam ser], ir pedir outro lá no sítio de fazer bilhetes de identidade. Uma vez feito o bilhete de identidade que vem substituir aquele que, pensa-se, se perdeu por aí, basta encontrar o bilhete de identidade, o tal que julgava perdido, numa gaveta ou no bolso dumas calças que não vestia há muito tempo. A verdade é que tinha os dois bilhetes de identidade no bolso, tendo optado por mostrar o mais recente, e, ao fim e ao cabo, acabei por nem mostrar o mais antigo [desejo de usar o argumento “então e dois bilhetes de identidade caducados não fazem as vezes dum bilhete de identidade em dia?” não me faltou] porque a vontade que tenho em ouvir duas lições de moral dum empregado dos correios é, em rigor, nula. Finalmente, e como terceira descoberta, surge o facto de, se se estiver parado junto a um dos lados duma passadeira, os carros param para, suponho eu, nos deixarem atravessar a estrada. Estive, hoje ou ontem, quinze minutos à espera num sítio que, mera coincidência, ser a zona do passeio que dá acesso directo e recto a uma passadeira. Acabaram por Parar, que eu bem contei, mais de trinta carros para me deixar passar. Uma esmagadora percentagem até fez aquele gesto do “vá, passe lá”. Mas eu não queria passar, estava só à espera. Desses mais de trinta, três indivíduos fizeram-me um pirete. A maior parte abanou só a cabeça. A estes, os que só abanaram a cabeça, fiz eu um pirete. Sou apologista de haver sempre um pirete em qualquer interacção social. Mais que um, bem, isso já pode passar por exagero. Mas um, um é elementar.

Só para isto parecer uma coisa com actualizações frequentes e outros adjectivos que façam sentido

pedro, 18.01.08


Porque a coerência é uma arte, e eu um artista de estripe picassiana vezes infinitos vezes infinitos, é com regrado orgulho que me vejo seguir, em parte, a dinâmica iniciada na comunicação a esta imediatamente anterior. De sorte que cá deixo, em profundo detalhe, ou – optando por uma retórica menos polvilhada de intrujice – em detalhe duma profunda mediania descritiva, o pior dia do ano transacto. Não em termos mundiais, humanos ou o que for. Apenas o meu. Temos então, em tão honrosa categoria, aquele dia em que, finalmente e após inúmeros – cerca de três, seguramente não mais de quatro – impulsos conscienciosos nesse sentido, resolvi presentear um ceguinho do metro com uma quantia monetária: vinte e poucos cêntimos, em moedas das pretas – algumas de cinco, portanto, nada mau. Tomada a decisão, e como expectável, foi-se acercando o cego, curiosamente o que menos encontro nestas lides. Cada vez mais próximo o feliz contemplado, procuro, no bolso das moedas pretas, um punhado desses belos exemplares. Porém, havia que lembrar que o cego não consegue subentender que o vou presentear, uma vez que não me vê a meter a mão no bolso. Neste aspecto, perdem muito para os romenos com acordeão, que esses vêem um indivíduo meter a mão no bolso, percebem que vão receber por terem tocado o “Cheira a Lisboa” ou uma música de Natal [isto é mais quando é Natal – e, note-se, chateiam-me estas cristalizações musicais a períodos temporais específicos; não pode, pergunto eu, um indivíduo ter vontade de ouvir um “Noite Feliz” em Agosto? Pronto. Fica a pergunta no ar, que entretanto já usei uns parênteses rectos, um traço, um ponto e vírgula e um ponto final, e, se calhar, não sei, esta intercalação às músicas de Natal tocadas por acordeões romenos já vai longa e depois é confuso para as pessoas] e param em frente à pessoa, expectando a sua pequena gratificação pelo momento musical e tradicional, e concomitante, boa disposição. Quando um desses romenos – e, amplo realce para este facto, só não fiz isto quando o Niculae jogava no Sporting – passa por mim, eu meto sempre a mão no bolso, finjo que estou a tentar apanhar uma moeda que está mesmo no fundo da algibeira e, passados uns, deixa cá ver assim por alto, trinta, quarenta segundos, retiro a mão, devagarinho, para criar suspense. O romeno espera, sorridente. Na prática, esperou que a minha mão, já fora do bolso, e sem moeda nenhuma à vista, mudasse uma música no meu leitor de aúdio digital, aparelho que dava para comprar um prédio em Bucareste. Isto é o que eu lhes digo. “Olhe qu’isto dá para comprar um prédio na tua terra, em Bucareste.” Em Bucareste talvez não, que as capitais são sempre sítios onde a especulação imobiliária grassa e arrasa, mas daria, seguramente, para uma faustosa moradia em Timisoara. O romeno vai-se embora, mas, durante um bocadinho teve esperança. Esperançar as pessoas é, em qualquer ponto do globo, bem melhor que lhes dar dez cêntimos, e acaba por seguir mais aquela dinâmica do provérbio chinês do não dês um peixe a um homem, ensina-o antes a pescar. Se bem que ensinar um homem a pescar é coisa que pode demorar. Há homens muito burros e, se pescar é chato, ensinar a pescar não deve ficar muito longe disso. Portanto, se estiver com pressa, acho que é de deixar o peixe. Ele que aprenda a pescar sozinho. Ou então coma carne, que não tem espinhas. Entrementes, e com tanto a acontecer em simultâneo, já me perdi. Vou deixar agora um espaço, voltar atrás para ler onde ia, e dar seguimento a isto.

 

O cego não me viu meter a mão no bolso, percebi logo que o ia deixar passar se não fosse mais expedito e, derivante dessa pressa que m’assaltou de rompante, deixei cair uma moeda de dois euros que, não sei a que propósito, estava no bolso das moedas pretas. Não mais recuperei essa moeda de dois euros, que caiu naquele folhe da porta do metro e, daí, sabe-se lá para onde algures na linha. Não tive o ataque de fúria que teria naqueles dias em que não tomo umas coisas que se chamam sedativos, dei as moedas pretas ao invisual e perguntei-lhe se não tinha ouvido uma moeda cair. É que, e uma vez que estão privados da visão, os cegos têm um outro sentido muito desenvolvido. Super-sentido, é o nome deste fenómeno. Podia ser que este cego tivesse super-audição. Mas não tinha, que ele só disse que sim, que lhe pareceu ter ouvido qualquer coisa. Se tivesse super-audição, tinha ouvido bem mais que isso. Se calhar era um cego com super-tacto, que dá jeito para sentir seios sem chegar a tocar na camisola. Ou super-paladar. O super-paladar traduz-se no facto de, por exemplo, quando se come um frango, esse frango saber mesmo, mesmo, mesmo, mesmo muito a frango. Lá lhe disse que aquela impressão de ter ouvido cair qualquer coisa estava relacionada com a queda efectiva duma moeda de dois euros, tendo, em seguida, explicado ao senhor as circunstâncias que provocaram tamanha perda. Findei a minha exposição descrito-argumentativa frisando que, moralmente, ele me deveria dar pelo menos um euro, uma vez que eu tinha perdido uma moeda de quatrocentos paus por causa dele. Não aceitou, e diz que isso é apenas um esquema para sacar duzentos paus a cegos como ele. Eu ainda lhe mandei a boca que s’impunha, aquela do “olhe, sabe, eu nem vou insistir mais, que o pior cego é aquele que não quer ver, homem” e retirei-me, deixando o cego, e porque não s’apercebeu que eu havia ido à minha vida seguindo outra direcção que não aquela para onde ele estava virado, a praguejar impropérios na direcção de outras pessoas que não eu. Desde esse dia, decidi que não mais daria uma moeda a cegos, tendo ainda, com os nervos, chegado a casa e apagado os mp3’s que tinha do Stevie Wonder. Tenho saudades do "Songs in the key of life", ou lá o que é, mas é o tipo de saudade bastante controlável. Como ter saudades de farinheira no cozido à portuguesa. É mais naquela dinâmica de até se poder ter saudades, mas saber que a farinheira não é nenhum chouriço. Ou uma carne de vaca. Nem uma morcela, quanto mais. É também, e sobretudo, impressionante como tenho sempre fome.


P.S: Isto era suposto estar ilustrado por uma fotografia, mas não está a aparecer, sabe lá Deus porquê. Este post scriptum sairá daqui assim que a fotografia em questão der sinal de vida ou, bastante mais provável, eu me lembrar passado demasiado tempo.

MMVDXII

pedro, 07.01.08



Partindo do pressuposto que tudo no mundo seguia um rumo sempre optimizado e que, pequeno exemplo dessa optimização, ninguém teria sido já obrigado a comer jaquinzinhos com arroz de cenoura porque não havia tomate pelado no supermercado e aquele em pedacinhos custa para lá do dobro, adiante-se, em abono da veracidade dos factos, que esta comunicação deveria ter sido trazida a público faz já um série de dias. Feita a ressalva, importa justificar o atraso, sendo que tal procedimento passará, única e imperativamente, pelo facto de eu querer que o título fosse dois mil/sete em numeração romana e, clara e estupidamente, só ter entendido, numa fase posterior à incrustação inabalável desse desejo em todo o meu ser, que não estava capacitado para operacionalizar tão específico desejo com rigor. Consequentemente, o título disto – que não passa duma amálgama de letras capitais que, julgo, são também numerais romanos – deve ser lido e processado como dois mil e sete no numérico romano. O que me leva a ter que dizer que, embora nos tempos que correm o que não faltam são razões para detestar sarracenos e sua cultura intrinsecamente camecéfala, há que lembrar sempre que, não fora por esses senhores e a sua numeração através de algarismos, e agora tínhamos que andar a comer com numeração através de letras. Já alguém tentou fazer uma conta de dividir com numeração romana? Não dá. É impossível. Tivesse-se, num exercício de absurdo fechamento ao que de melhor tem a cultura moura, mantido a numeração romana e ninguém em lado nenhum passava da terceira classe. Calcando outro campo analítico, o do ludus, como é que seria jogar às escondidas, quando contar até cinquenta em numeração romana tem ar de ser coisa para demorar não menos que um recreio inteiro? Já para não falar, a nível económico, na moeda em numeração romana e no tempo que se demoraria a fazer um troco. Dê-se graças a quem de direito pela adopção da numerália sarracena. Pois bem, o que importa reter é que, nesta fase de transição anual, manda a tradição que se façam balanços do que passou e resoluções para o que aí vem. Concordo em parte, embora discorde em absoluto, de modo que, no decurso de um período temporal ainda por balizar, ir-se-á, também aqui, estruturar exercício de similitude relativa. Comece-se por um apontamento de balanço e outro de natureza onde impere a dinâmica da resolução. Assim, como balanço, temos a eleição dos meus piores e melhores telefonemas de dois mil/sete, intercalando-os com um tipo de telefonemas os quais achei por bem apelidar de quase piores telefonemas de dois mil/sete. A classificação final foi, em vista disso, a que se segue a estes dois pontos:

 

Pior telefonema de dois mil/sete: telefonemas do “olá, sou [não sei quem] do Barkley’s [não sei quê, etc.]” a perguntarem se o meu pai está em casa.

 

Quase pior telefonema de dois mil/sete: quando não sou que atendo e é para mim.

 

Melhor telefonema de dois mil/sete: quando não sou eu que atendo e não é para mim.

 

Para que melhor se entenda esta dinâmica avaliativa do ano que findou faz poucos dias, deixo outro balanço marcado essencialmente pela eleição de coisas:

 

Pior condição médica de dois mil/sete: Frieiras, seguido de muito perto por cortes de papel quando o jantar era batatas fritas e não me apeteceu usar talheres.

 

Quase melhor condição médica de dois mil/sete: Aftas na ponta da língua.

 

Melhor condição médica de dois mil/sete: Febre quando está muito frio.


Por seu turno, como resolução para dois mil/oito, posso adiantar desde já a que se segue. Por muito que m’apeteça, e apetecerá que eu sei, vou deixar de pedir a Bola de Berlim no café, caso o referido item se encontre nas seguintes condições:


a) Ter, notoriamente, passado a noite no estabelecimento;
b) Estar encafuada entre uma parafernália de bolos tal que, quando a começar a                        comer, me vai saber a meia dúzia de bolos diferentes;

c) Ter, escandalosamente, o creme todo a sair por um dos lados;
d) A pessoa que me serve dizer “ora, cá está uma bolinha de berlinde”;
e) A cobertura ser de açúcar de pacote ao invés daquele mais fininho;

 

Há razões para que o ano de dois mil/oito vá passar por estes critérios no que às Bolas de Berlim diz respeito. Se a razão para a alínea a) é para lá de óbvia, a c) e d) podem-se reduzir a uma flexão do verbo enervar – isto é, enerva-me –, ao passo que a e) se explica pela ocorrência de eu me sujar todo se for uma Bola de Berlim com açúcar de pacote, aquele que, em termos de tacto, parece sal grosso. Propositadamente, reservo acentuado destaque para a alínea b), uma vez que é extremamente desagradável ingerir uma Bola de Berlim que conjuga o sabor de, chegou-me a acontecer, seis bolos. Todos eles horríveis, diga-se de passagem. A saber, o Pata de Veado, o Caracol, um Palmier grande, uma coisa com coco ralado, uma outra que tem um creme oco e de coloração esbranquiçada e o Rim/um grande bocado daquela parte queimada do pastel de nata. Como curioso emerge o facto de o bolo de coco ralado que esteve encostado à Bola de Berlim dotar esta última do cheiro a coco, mas não do sabor. Isto intriga-me a níveis pouco naturais em humanos, mas, nem no sentido de melhor entender o fenómeno, não mais experimentarei este tipo de Bolas de Berlim mutantes. Dois mil/oito será um ano de categoria.

Obliquamente é uma palavra que gosto de usar em conversas

pedro, 17.12.07


Da imensidão de coisas que, substancialmente, m’inquietam e me tornam no ser humano de excepcionalidade fascinante e exponencial que sou hoje, pode-se destacar a seguinte. Sendo curto e grosso, ao invés do habitual comprido e fino, convinha-me que se definisse já com que idade vou finalmente saber que raio de coisas deixam nódoa. Isto apoquenta-me por uma série de razões, nomeadamente o facto de eu m'alimentar como se tivesse acabado de receber uma valente anestesia nas bochechas e zonas circundantes, dinâmica que implica que várias substâncias alimentícias acabem por deixar a sua marca na minha camisola. É favor não se torcer já o nariz, que muita gente intelectualmente desenvolvida tem estas pequenas dificuldades de, chamemos-lhe assim, teor higiénico-cuidadoso. Aristóteles, por exemplo, nunca usou creme Nivea para nada e ninguém o respeita menos por isso. Acontece que, não raras vezes, dou por mim a escolher a cor da camisola com base naquilo que vou comer a seguir ou nos próximos dias. A título de exemplo, posso adiantar que tenho uma camisola que é tal e qual a cor do molho de sapateira. E umas cinco só para iogurtes com pedaços. E por aí. O problema acabam por ser os pratos multicolor ou pratos que, simplesmente, têm uma cor para a qual eu não tenho uma camisola de coloração sequer equivalente. Mais uma vez a título de exemplo, posso adiantar que não tenho nenhuma camisola cuja cor permita que um bocado de arroz doce passe dissimulado durante dias ou, aproximando-me mais da factualidade, semanas. Pese embora o facto de - e isto para além de conseguir tornar qualquer palavra num advérbio - eu ser espantosamente bom a fingir que não sabia que estava lá a nódoa [ou seja, entro num sítio e, quando me chamam a atenção para a nódoa no peito, fico muito admirado num sentido “ai que vergonha, palavra de honra que não estava assim quando sai de casa”], a verdade é que me dava jeito saber que raio de coisas deixam efectivamente nódoa. A única coisa que acho que deixa nódoa é o pêssego. Logo, quando como um pêssego, esforço-me herculeamente para não pingar na camisola, uma vez que sei que, posteriormente, não me bastará molhar com água da casa de banho a zona pingada de molho ou que for. Dá-me jeito balizar estas coisas porque, ao fim e ao cabo, não tenho vida nem pachorra para m’esforçar com todos os alimentos. Já faço isso com pêssegos. Deixo espaço, e reservo o esforço, para, enfim, mais meia dúzia de alimentos/pratos. A minha experiência de vida diz-me ao ouvido que, a exemplo de saber se vai fazer frio ou não, saber que coisas deixam nódoa é um bónus acompanhante da maternidade. Ser mãe, de momento, não me dá jeito por duas ordens de razões: primeira, é-me, parece-me, fisicamente impossível desovar; segunda, ainda não decidi que nome darei a um filho macho, se tiver a sorte de, num futuro próximo, ter alguém com quem dividir as culpas por o tampo da sanita estar urinalmente decorado. Presentemente, e como expus, o que me dava mesmo uma imensidão de jeito era saber que coisas, como o pêssego, deixam nódoa e que coisas, por exclusão de partes, não deixam nódoa. Já que se falou em fruta, assinaladamente pêssegos, gostaria de saber se ainda dá para apanhar escorbuto, uma vez que, bem vistas as coisas, há anos que não como laranjas e prezo muito as minhas gengivas não-hemorrágicas. Entretanto, faz-se Natal e eu, como acontece desde sempre, vou comer arroz com lombo na mesa dos pequenos, enquanto os grandes fingem que gostam de caras de bacalhau com couves. Às vezes, é tão bom ser eu.

obladì, obladà

pedro, 30.11.07


Pelo tom, mas só por isso, já percebi que não se deve deixar as sapatilhas no quarto. Ainda assim, nunca consegui ter uma resposta, nem me refiro a resposta decente ou mediana, é resposta sequer, para a questão “o que é que as sapatilhas estão a fazer no quarto?”. Sei lá eu bem ou o caraças!, como dizia um indivíduo que eu conheci em tempos e cuja única ocupação parecia ser a de dar rodagem a uma Toyota Hiace grená ou amarelo [acho que só se faziam nestas cores], se bem que ele substituía o caraças por outra palavra que, facto invulgar, era, e é, ainda é, uma asneira das grandes. Portanto, como dizia, pelo tom, percebo que não é suposto as sapatilhas estarem no quarto, porque noto ali aborrecimento e não simples desconhecimento e interesse relativo a que raio fazem as sapatilhas no quarto. Não se trata de metafisicamente questionar a acção das sapatilhas naquela zona da casa em concreto, é aborrecimento puro e simples. Nunca ouvi “o que é que as sapatilhas estão a fazer na despensa?”, mas, se ouvir, também não sei responder. Há perguntas que eu nem sabia que existiam, quanto mais que pode haver respostas para elas. Outro bom exemplo é o “como é que regaste as plantas?”. Ainda em termos de perguntas, convém lembrar que há dias me ligaram a perguntar se queria ganhar uma viagem para duas pessoas e, logo depois de ouvir isto, disse “quero pois” e perguntei “mas dá para ir só eu para ir à larga no avião, deitado ou assim?”. A pessoa disse que eu é que sabia, se queria ir sozinho ou acompanhado. Eu disse que não m’importa isso, importa-me é se posso ir deitado, assim de lado, no avião. Se ganho a viagem para dois, e vou só eu, é justo que o lugar do lado seja meu também e eu possa ir deitado, de preferência para a minha esquerda que é desse ouvido que ainda não me saiu alguma água do mar que lá entrou neste último Verão. Esta moça que telefona para casa dos cidadãos a perguntar se querem ganhar uma viagem para duas pessoas começou a dizer que não tinha a certeza, que isso ter-se-ia (óbvio que ela não usou este tempo verbal – usou um teria-se - impossível de catalogar, embora eu saiba que é um condicional, etc., qualquer coisa) que ver com a companhia área. Antes que ela pudesse avançar com mais pormenores de livre vontade e de protocolo, perguntei se passavam uns filmes no avião e se dava para passarem o Fim-de-semana com o Morto, o primeiro, que eu só vi o dois e não sei como é que o morto morreu, o que me deixou bastante à nora no acompanhamento da sequela. Ou então um filme qualquer que tenha o Neil Diamond a cantar nos créditos finais, que há diversos. Ou um que tenha a sleeping in my car, dos Roxette, e lá lhe perguntei “sabe qual é”, tendo, acto contínuo, começado a cantar o refrão. Como só sei aquela parte do “sleeping my car, I will não sei quê [nesta parte fiz um som parecido com belest you]”, repeti-a três vezes. A partir daqui ela começou a tentar falar por cima do que eu dizia e lá a ouvi por uns segundos. Diz que teria que me deslocar a um endereço e apanhar com uma reunião sobre, pareceu-me, aspiradores, mas é possível que fosse um coiso de limpar alcatifas só com o vapor. Interrompia-a logo aos gritos, com a seguinte argumentação: “mas isto são horas de telefonar para casa das pessoas?, não sabe que eu sou guarda-nocturno e que ligar a estas horas é como ligar para casa dum professor primário às quatro da manhã?, “como deve calcular, meio-dia são quatro e meia da manhã no meu fuso horário!”, “têm esse hábito por aí, de ligar para casa de professores primários às quatro da manhã?”. Entretanto, a chamada caiu, mas este tipo de dinâmica, cem por cento verídica, ocorre sempre caso perguntem, ao telefone, por um qualquer nome que não seja o meu. Verifica-se que não tenho coragem de dizer estas coisas em meu nome. Motivo de assinalável orgulho é o seguinte facto: aqui há coisa de aquando daquilo do Rei de Espanha ter perguntado ao Hugo Chávez porque é que ele não se calava, eu convenci um meu conhecido da inteira factualidade da seguinte parvoíce: o Rei de Espanha tinha mandado calar o Hugo Chavéz porque ele, Hugo, tinha jogado no Real Madrid nos anos oitenta e marcava muitos golos de pontapé de bicicleta, tendo o Rei de Espanha ficado melindrado com ele, Hugo, devido ao seguinte facto: Chavéz tinha, no auge da sua carreira, alegado ordenados em atraso para rescindir contrato com o Real de Madrid, o clube do coração do Rei, para assinar com o seguinte clube: o Chivas de Guadalajara, do México, acontecimento que debilitou consideravelmente o clube do Rei, levando a que perdesse o campeonato na última jornada para um clube rival: o Atlético de Madrid, ou: a Real Sociedad. Daí que, ainda lixado com isso, o Rei se tenha enervado e mandado calar o Hugo Chávez. A princípio, o meu conhecido mostrou-se descrente, mas eu logo recorri a truque infalível. Gritei para um indivíduo que estava lá mais além “olha lá, o Hugo Chávez não jogou no Real Madrid?” e, crente que estava que, no calor da pressão, muita gente confunde os apelidos Chávez com Sánchez, lá obtive resposta amplamente positiva, através dum “jogou” acompanhado dum positivo abanar de cabeça. Depois eu queria era estar presente quando as pessoas que eu convenço destas coisas passam a informação a outras, lá no emprego, mas tenho que me contentar com o imaginar. O que mais me lixa nisto tudo de mandar calar pessoas é o facto de ninguém acreditar que uma vez mandei calar o Freitas do Amaral. Fiz-lhe um shhtta! no cinema, ali no Monumental, que ele ria-se de coisas sem piada e tinha um daqueles risos de pessoa que tem a mania só porque lê livros. Quem conhecer o Freitas sabe que isto é verdade, que ele se ri assim e se ri em cenas em que não faz sentido rir, um daqueles risos de “ah, ninguém se vai rir nesta cena, mas vou-me rir eu, que assim passo por indivíduo culturalmente evoluído”, mas não, a verdade é que passa por parvo, que eu bem sei quando é que é suposto achar piada a coisas no cinema; logo, ora bem, quem conhece o Freitas, acredita em mim e sabe que isto aconteceu mesmo. Agradece-se, então, que, via carta registada, alguém que conheça o Freitas me faça chegar declaração a validar a autenticidade deste meu shhtta! no sentido de ocorrerem uma diversidade considerável de acontecimentos, todos eles facilmente enquadráveis nessa bela arte do meter-nojo.

emozione dopo emozione

pedro, 28.11.07


Nunca esquecendo que vivemos num mundo em que não passa um minuto sem que alguém canzane [terceira pessoa do singular do presente do conjuntivo do verbo canzanar] um animal de quinta, eu, pelo sim, pelo não, quando um indivíduo me pergunta se pode usar a minha casa de banho, e porque esta questão se apresenta estruturalmente como bastante ambígua, contraponho sempre um “para quê?”. Não estou para dizer apenas “claro, claro, é ali à direita” e passado um bocado aparecer um marmanjo de barba feita e banho tomado, a usar o meu robe preferido, quando tinha eu ficado a pensar que o usufruto do quarto de banho fosse apenas no sentido de mictar ou usar o espelho para ver se tinha alguma coisa nos dentes. Ressalve-se que, como bónus, depois do “para quê?”, pouca gente perdura na demonstração de vontade em recorrer à minha casa de banho, o que será sempre de salutar. Até porque há dois cafés ao pé de minha casa, ambos com WC, e os quais eu não tenho que limpar. A primeira parte desta última oração é o facto que refiro quando as pessoas, apesar do “para quê?”, especificam e continuam a querer usar a minha casa de banho. Daí que, de tempos a tempos, num desses cafés, lá ouça uns “é você que encaminha pessoas para usarem aqui a casa de banho, não é?”, todavia, como só lá vou ler o jornal, não corro o risco de me cuspirem na bica.

cose della vita

pedro, 26.11.07


Dica complementar e prática: como apanhar grilos ou isso



Opção primeira: Apodere-se de uma palhinha de extensão razoável e, após a inserção da dita na casa do grilo [vulgo, buraco – obviamente, caralho, que se dispensam todo e qualquer vulgarismo analógico], vá rolando entre dedos, fazendo cócegas ao insecto ortóptero aqui objecto da sua caçada, até que este venha cá para fora. Se ficou confuso, lembre-se: insecto ortóptero é o grilo [li muitos dicionários quando tive papeira, varicela e aquela outra coisa que se deve apanhar em puto porque quando se é grande faz mal e morremos].

 

Vantagem da opção primeira: além do grilo sair bem-disposto e a gargalhar, esta opção tem o seu quê de poético, infanto-nostálgico e demais diversas paneleirices tão do agrado de poetas, infanto-nostálgicos e demais diversos paneleiros.

 

Desvantagem da opção primeira: Pode ocorrer o grilo não ter cócegas ou ter tido um compromisso fora. Mas, mais importante que isso, esta opção não nos dá uma desculpa para mijarmos para um buraco [vulgo, casa] onde mora um grilo.

 

Opção segunda: Urine para a casa [que é vulgo quê? exacto, buraco] do grilo, até que o referido animal saia a boiar num transbordo de líquido urinoso. Se correr bem, o grilo sairá em posição ‘escorrega de aquaparque’. Será muito divertido.

 

Vantagem da opção segunda: É para lá d’óbvia: esta opção estrutura uma desculpa para mijarmos para um buraco onde mora um grilo, acontecimento que é sempre de louvar, seja em que latitude for.

 

Desvantagem da opção segunda: Além de, muito possivelmente, ficar com um grilo que cheirar a urina – o que pode depois levar a que se coloquem questões da índole de uma “este grilo até canta bem, mas cheira a mijo” –, trata-se de uma opção que, embora esteja longe de ser exclusiva, surge-nos claramente optimizada para o género masculino, dado possuirmos a faculdade da pontaria. Para ambos os sexos, podem-se apontar, como pontos menos positivos, o facto de nem sempre se ter vontade de mijar e às vezes a casa [vulgo nada, já chega] do grilo ser, afinal, o lar duma cobra ou etc.

non c'è più fantasia

pedro, 23.11.07


O capitalismo, a exemplo de variadíssimos outros ismo [autoclismo, cinismo, feudalismo, metabolismo, sabujismo, catecismo, etc., serão porventura exemplos capazes] é fenómeno que se apresenta perante mim sem segredos de qualquer espécie. Conheço-lhe as manhas todas, e, não fosse a ocorrência de o Marx falar alemão e já ter morrido – sobretudo isto –, eu era cachopo para ser um dos seus melhores amigos, ou inclusive até substituir o seu fiel companheiro, Engels, em eventos sociais ou o que fosse, quando este estivesse constipado ou simplesmente a chocar alguma, que ninguém é imune a aragens e correntes de ar. Assim com’assim, o que importa reter é a circunstância de este regime económico, precavendo-se contra a sua anunciada queda, tentar, frequente e sub-repticiamente, inundar-nos a mente com mensagens sobre as suas supostas mais-valias relativamente a outros sistemas. Estes recados estão por todo o lado, sem excepção do frasco de gel de banho a que recorri hoje. Sou, como seria expectável, indivíduo sem preferência na área dos géis de banho, uma vez que utilizo sempre o que estiver ali nos arrabaldes da banheira. Decorrente desta preferência, surge-nos o facto de nunca ter comprado, então, um frasco de gel de banho. O mesmo princípio s’aplicaria a lasanhas congeladas se, por obra e graça de sabe-se lá quem, o frigorífico, mormente a sua zona da congelação, tivesse lá sempre um exemplar de lasanha. Como tal nunca se verificou, vejo-me na obrigação fisiológica e social de comprar lasanhas congeladas com assiduidade. Géis de banho é que nunca foi necessário. Está lá sempre pelo menos um frasco e, na única vez em que não esteve, optei por gastar mais champô, espalhando-o corporalmente; logo eu, que sou um acérrimo partidário de espuma com fartura. Ora, o que sucedeu foi que o capitalismo, através dum gel de banho de marca Fa, quis-me convencer, como é de resto seu apanágio, que eu estaria a ter acesso a um produto fantástico, repleto de substâncias raras e reguladas com tecnologia de ponta, tudo isto a um preço que, enfim, no máximo dos máximos, não meteria nojo por aí além [informei-me a posteriori e percebi que custou seiscentos e cinquenta paus]. Este gel de banho Fa, como, presumivelmente, todos os géis de banho Fa, tinha um sabor. Ou cheiro, como se preferir. Este gel de banho Fa tinha como subtítulo, o mesmo é dizer, tinha como binómio sabor/cheiro, a torresmada “Limões do Caribe”. Não nego que andei o dia inteiro a cheirar a limão, tendo mesmo auscultado um par de vezes a frase “ai, cheira aqui mesmo a limão”. Era eu, que tresandei a limão todo santo dia, cara senhora. Bebi, como de costume, dois absintos ainda não era meio-dia e até isso me soube a limão, sendo que isto se calhar se verifica mais porque eu uso muito gel de banho na zona que medeia o nariz e o lábio superior, no sentido de, desse modo incrível, me cheirar sempre muito bem em todo o lado. É verdade que m’estraga quase todas as refeições, porque todos os pratos me sabem ao gel de banho que usei, tirando daquela vez que usei champô e me soube a champô [mel e amêndoas, parece-me, o que não foi mau de todo, uma vez que gosto de mel e amêndoas], mas lá acaba por ser um acto de inegáveis contrapartidas. Nomeadamente, o conseguir-se urinar num canto do Bairro Alto sem nos cheirar a mijaceira, ainda por cima alheia. É, digamos, factor de que não me vejo a abdicar tão cedo. Assim, a minha individualidade, e até naqueles sítios onde o cheiro a mijonça é tão intenso que atira com pessoas ao chão e provoca desmaios colectivos, só processa fragrâncias cheirosas que, ainda por cima, sei que deixam a pele macia e hidratada. Presentemente, não sei de que porra estava a falar, de tal maneira que irei ali mais atrás ler do que se tratava. O gel de banho Fa “Limões do Caribe” enquanto ardil do capitalismo, exactamente. E ardil em que medida, sentido e mais um outro sinónimo disto, se houver? Vou elucidar, quanto mais não seja porque o que não falta aqui deste lado é tempo e vontade de ajudar a desmascarar e desmistificar. Que pessoa é que, no seu perfeito juízo, não iria apoiar um sistema que, por uns meros seiscentos e cinquenta paus [três euros e picos ao câmbio actual e de sempre], lhe garante andar uns poucos de dias [um mês, se misturarmos água ao gel de banho quando já houver pouco, naquela altura em que até temos de deixar o frasco virado ao contrário para depois quando formos tomar banho não termos que estar à espera que o gel de banho propriamente dito nos chegue à mão] a cheirar a limões do Caribe? Não é limões de, por exemplo, Benavente. É das Caraíbas! Isto é, o capitalismo, e a/o Fa em particular, querem-me convencer que, em vez de terem apanhado meia dúzia de exemplares do limoeiro ali ao pé da fábrica, foram de propósito às Caraíbas buscar limões para usar no meu gel de banho? Com certeza que sim. Razão tenho eu, e o Marx, embora por arrasto: o capitalismo emaranha-se de tal forma nos seus próprios equívocos que perde a cabeça e vai sufocando. E sufocará de vez, porque, ao invés de nos enganar com a léria que o gel de banho tinha limões de, quanto muito, Ayamonte, preferiu que fosse tudo à grande e, conseguintemente, [inserir sinónimo de fodeu-se, um que, de preferência, não seja brejeiro mas tenha força argumentativa semelhante].


Eurostat: foram usados cerca de trinta advérbios. Um novo recorde pessoal? Não se sabe, que nem estes contei, mas talvez.