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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

É que já nem me dou ao trabalho de pensar nesta parte

pedro, 30.07.07


Envinagra-me certa coisa da qual ganhei consciência, não diria total, que isso pautar-se-ia por um certo piscar de olhos ao exagero e não penetro por caminhos dessa índole hiperboliforme, mas, digamos, da qual m’apercebi talvez assim de uma forma mais abrangente na semana que findou ainda nem há poucacinho. Todavia, no entanto, porém, contudo, não obstante e mas, antes disso, uma pequena retrospectiva histórica de teor pessoal. Rememoro perfeitamente o dia em que, pela primeira vez, perdi a esperança no chamado processo democrático. Corria um dia de um mês do ano de mil novecentos e oitenta e oito, contava eu, em termos de anos, precisamente este último algarismo, quando me preparo para acompanhar mais uma emissão do “agora escolha”, magazine entretanto atropelado por esse veículo motorizado que é a suposta evolução dos mercados televisivos, esse implacável automóvel fora de mão, em excesso de velocidade e desrespeitador de semáforos, passadeiras e prioridades. Era o “os três duques” contra “um anjo na terra”. Que coça que ia ser. O anjo ia levar nas fuças que nem gente grande. Os três duques, a série, que o filme torna entusiasmante um hipotético documentário em que dois pacientes de Parkinson jogassem Mikado à melhor de dez, teria que sair daquilo como vencedor. Não poderia ser de outra forma. Aos olhos da criança de oito anos, um anjo na terra era sopa. Com muitas couves. Aliás, talos de couve. E cabelos da ama. E um penso rápido. E um bocado de gaze. Sopa, pronto, que é sempre assim qu’eu a imagino e projecto. Um anjo na terra era isso. Depois havia os três duques, que era gelado. Não um gelado delirante, mas um gelado. Um, deixa-me cá pensar um bocadinho; já sei, já sei, um Epá que temos que comer com uma colher de café porque o estabelecimento comercial já não tem colheres de plástico de Epá. Esses Epás são chatos, pá. Mesmo sendo Epás. Conjuntamente, se a pretérita imagem não vos preencheu, meus maricas, tenho aqui outra e reza da forma que verão já a seguir a esta vírgula, (esta que ficou agora para trás, esta, esta, esta! Aquela, aquela, aquela! Já passou, era aquela! Aquela, porra. Já chega.) um Epá daqueles em que a pastilha é mirrada e tem a forma duma passa e é rija e parte-se toda e nem tem sabor nenhum e nem dá para mascar e quando tentamos fazer um balão acabamos por cuspir a pastilha sem querer para a cara de alguém que pensa que fizemos de propósito e vai fazer queixa aos nossos pais e eles dizem-nos “então tu agora cospes nas pessoas? gostava de saber onde é que aprendeste essas coisas que cá em casa não foi” e tiram-nos o ar dos pneus da bmx ou então o amortecedor durante o verão inteiro como castigo. Nada de muito elaborado, portanto. Custa-me voltar a falar nisso, mas ganhou a sopa. Ganhou o anjo na terra. E eu tive que gramar com mais um episódio do Michael Landon de jardineiras de ganga, uma vez ou outra, bombazina, a resolver divergências familiares de campónios com a sua retórica de paz, amor e fraternidade, quando podia ter estado a ver o pernil da Daisy Duke e umas derrapagens que levantavam pó que, c’uma porra, era muito e tudo, ao ponto de conspurcar sempre o fato do xerife e barra ou daquele gajo da farpela branca, mas até era muito bem feita porque eles era maus e inimigos da jovial diversão. A minha crença no processo democrático sofre aí o seu maior e mais traumático abalo. Percebi, aos oito anos, que o povo é estúpido ao ponto de fazer este tipo de escolhas. Todo o sistema democrático deve ser posto em causa quando o anjo na terra ganha aos três duques no agora escolha. Isto é óbvio e devia ser aprofundado em profundidade por estudos. Se o que a democracia ensina às crianças é o facto de, sob a égide desse sistema, qualquer anjo na terra poder subir ao poder, então, caros analistas, não se admirem que depois, passados uns bons vinte, trinta anos, quiçá até quarenta e picos, tenham as ruas pejadas de anti-democratas. Algumas, umas três, se tivesse que arriscar num número, semanas depois, houve reedição do combate. Embora não tenha podido vislumbrar o desfecho deste segundo encontro, devido a uma consulta no posto médico para me ser administrada a vacina contra o tétano, fiquei a saber, por fonte segura, que, desta vez, os três duques tinham sovado o anjo na terra e que o episódio da consagração tinha sido aquele em que toda a gente pensava que eles tinham morrido afogados no lago mas afinal não. Diz que é o melhor. Agora já ganhou o gelado. Quando eu não podia comer. O povo, afinal, nem sempre é estúpido; às vezes é inconveniente. Para quem estiver confuso com a lógica que sustenta as duas últimas frases antes desta última, é só substituir “gelado” por “três duques” e “comer” por “ver”. Os mais iluminados perceberão que, genialmente, me limitei a seguir a analogia germinada ali mais em cima naquelas linhas com letras e alguma pontuação que, dirão algumas antas muito mal formadas, ética e fisicamente, e sem noções mínimas do que quer que seja, terá demasiadas pausas mínimas. O mesmo é dizer, vírgulas. Tudo isto para me despedir com uma daquelas frases que, mais dia, menos dia, vai fazer parte daqueles livrinhos de citações. A democracia é o melhor sistema, mas só quando os três duques ganham ao anjo na terra. Aliás, para tornar a frase ainda mais passível de pertencer a essa inaudita categoria que são os livrinhos de citações, reformulo a dita. A democracia é o melhor sistema, mas só quando os três duques ganham ao anjo na terra e eu pude ver porque não tive que ir levar a vacina contra o tétano.

 

Post-scriptum: Entretanto, algures, esqueci-me daquilo que me levou a escrever a primeira frase desta tese de doutoramento. Destacando, desde já, que quem teve que ir lá acima ver que frase era é tuberculoso da cara, não queria também deixar de dizer que, na eventualidade de me lembrar ainda em vida, voltarei a tão específico assunto geral. Para compensar o lapsus memoriae, deixo uma anedota inventada por mim e que já usei em festas, para gáudio de, inclusive, pessoas. Requer, no entanto, alguma dose de enquadramento, facilmente captável, como verão já a seguir. Ora, reza assim, ‘sabes quem é que também detesta piada de gases?’ ‘Quem?’ ‘Os judeus’. Adoro anedotas. 

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