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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Mundos Paralelos

pedro, 30.12.05
Cada vez mais me convenço que não existem grandes diferenças entre a vida adulta e a infância. Tudo, mas mesmo tudo, na vida adulta não passa de um equivalente de qualquer coisa que já se vivia na existência de gaiato. A única diferença é que, como as pessoas se querem sentir mais adultas, crescidas, sofisticam as dinâmicas, dão-lhes nomes pomposos e sérios. Mas a essência é a mesma. O exemplo mais flagrante é a prática, adulta, da greve de fome como forma de protesto. Afinal, o que é uma greve de fome se não uma mera transposição do “não comer a sopa” para a vida de crescido? Eu, palavra de honra, não vejo grandes diferenças entre um adulto a fazer uma greve de fome porque o tribunal nunca mais lhe resolve o caso e entre um puto que amua em frente ao prato de sopa porque a mãe não o deixou comer os lápis de cera que cheiram mesmo a laranja. A diferença, pelo menos a essencial, reside no nome, pejorativo num caso, revelador do desespero humano no outro, facto que, invariavelmente, torna, aos olhos do mundo, a birra num capricho individual e a greve de fome num caso de vida que merece destaque mediático e solidariedade popular. A grande questão é que os adultos não podem fazer birras, já são crescidos, ponderados e frios, e, nesse sentido, não só recorrem ao truque de lhe – à birra – subverter o nome, como ainda se tornam solidários com quem a faz, ao contrário da dinâmica infantil, em que o petiz é abandonado, desprezado e julgado pelo resto da sociedade.

O Manuel Subtil, quando se trancou na casa de banho da RTP, e disse que tinha uma bomba e “ai Jesus, saiam daqui e não intervenham, que eu faço rebentar isto tudo!”, mais não fez que actualizar o célebre acto de se fechar em qualquer lado e gritar, para os pais, “Vou ficar aqui sem respirar até me darem aquilo que eu quero!”. As reacções populares a estes acontecimentos? “Olha-me bem para aquele fedelho malcriado e mimado”, num caso, e “pobre homem, que, de tanto desespero, chegou a este ponto” no outro. Nunca vi um puto ser aplaudido por uma multidão depois de fazer birra num centro comercial. Não se percebe a diferença de tratamento.

Algumas das formas de acabar com a birra – “resolver a situação” no caso adulto – são também equivalentes. Se um miúdo faz birra numa loja, porque quer não sei quê, o pai ou a mãe vão dizer “porta-te bem por causa da senhora da loja!”. A “senhora da loja” é a versão infantil do “eles” adulto. O “eles” é o culpado de tudo o que de mal acontece na vida de todo e qualquer indivíduo. O homem que faz greve de fome ouvirá, de certeza, da parte das pessoas que o querem convencer a abandonar tão nobre birra, um “Pois, eles não querem saber das nossas razões” seguido de um “é uma tristeza, mas é assim e não podemos fazer nada, por isso dê lá uma trinca neste pão de leite com fiambre e manteiga”. Com a “senhora da loja” é igual. A “senhora da loja” não quer saber das razões do puto, quer é que ele se cale e não perturbe a paz do negócio. “Eles” também não querem saber. E se não se calam, puto com a mosca e adulto desesperado, a “senhora da loja” e “eles” vão, respectivamente, intervir. E, mais cedo ou mais tarde, é através desta ameaça, da intervenção, que a birra amaina e a greve de fome acaba com uma bifana na roulotte que entretanto se instalara para aproveitar a aglomeração de pessoas.

Destruidor de Mitos - O Milagre de Fátima

pedro, 14.12.05
Um dos mais propalados mitos, envolvendo o nome de Portugal, é o dos pastorinhos e Nossa Senhora de Fátima. Começo já por avisar que sempre confundi, e confundirei, os nomes dos três pastorinhos com os dos reis magos. Depois, como se não bastasse, ainda confundo os nomes dos três pastorinhos entre si, nunca tendo bem a certeza se havia um Francisco ou uma Francisca, um Jacinto ou uma Jacinta, se eram dois rapazes e uma rapariga, ou vice-versa, enfim, matéria para me deixar em acentuada reflexão, e catatónico, durante largos minutos. Também confundo o Abel e o Caim com o David e o Golias, e raramente sei quem matou quem. O que sempre soube é que um dos pastorinhos era a irmã Lúcia, e que foi à volta das suas visões que se ergueu o mito de Fátima. À pala das suas visões, Lúcia tornou Fátima na Las Vegas da religião e, muito provavelmente, vai conseguir sacar uma canonização. Para todos aqueles que querem ser santos – para ter estátuas construídas à sua imagem, pessoas a pedirem-lhe coisas ou um feriado em sua honra em que as pessoas na véspera enchem a mula de sardinhas –, não desanimem, até porque, afinal de contas, não é assim tão complicado como isso. E a história de vida da irmã Lúcia prova-o. Atentai em algumas das avarias que lhe vão garantir um lugar cativo na tribuna de honra do céu.

Avaria 1 – Há quase 90 anos, Lúcia viu Nossa Senhora de Fátima em cima de uma azinheira. Longe de mim ser especialista em milagres, mas, logo para começar, parece-me que Nossa Senhora aparecer em cima de uma azinheira é pouco credível. Imaginem que eram uma entidade divina e tinha uma infinidade de poderes à vossa disposição (multiplicar pães, curar doentes, dividir oceanos, fazer as estátuas em vossa homenagem chorar sangue ou cera, mandar trovoadas, entre outras coisas porreiras). Pá, subir a uma azinheira é muito pouco divino, parece-me. Eu consigo subir a uma azinheira com relativa facilidade e ser visto. E depois há para aí tanta árvore com um ar mais divinal que uma azinheira. Uma acácia, um pinheiro-de-alepo, uma bétula, por exemplo, e só para citar alguns nomes. Não faz sentido uma divindade como Nossa Senhora subir a azinheiras. É como se o Super-Homem passasse multas de trânsito em vez de derrotar vilões que ameaçam destruir o mundo. Portanto, logo aqui, ficamos a saber que a coerência e excepcionalidade do acontecimento que nos pode tornar santos não são critérios decisivos e profundamente investigados.

Avaria 2 – A irmã Lúcia andava sempre com a mesma roupa. Mas isso também o Einstein andava. E a única coisa que a irmã Lúcia fez foi ver algo que até lhe apareceu à frente. Que eu saiba, a teoria da relatividade não se limitou a aparecer à frente do Einstein e, mesmo assim, ele não teve direito a dia de luto nacional na Alemanha, muito menos se fala na hipótese de canonização do cabeçudo.

Avaria 3 – E, por amor de Deus, que segredos são aqueles? Mais coisa, menos coisa, a Rússia tinha, obrigatoriamente, que se deixar de comunismos e socialismos, e passar mas é a adorar o catolicismo, senão o mundo acabava. Ora bem, vamos supor que sim, que Deus achava mesmo que o comunismo seria o princípio do fim do mundo e que a União Soviética, como porta-estandarte da ideologia, tinha que mudar de política para salvar a humanidade. Então, faz sentido que Deus decidisse avisar o mundo do perigo que corríamos e, para fazê-lo, havia que escolher um sítio específico para tornar público esse aviso. O que eu gostava de saber é em que momento da conversa de Deus com os seus conselheiros é que se decidiu que o sítio ideal para avisar o mundo que o fim poderia estar perto era mesmo a Cova da Iria. Melhor ainda: uma azinheira na Cova da Iria. Realmente, de uma azinheira na Cova da Iria ao Kremlin é um instantinho.

Um dos outros segredos seria a visão do Inferno, isto é, a prova de que o Inferno existia mesmo. Nunca duvidei disso. Mas sempre pensei que fosse um sítio onde as almas condenadas tivessem que assistir, para toda a eternidade, ao último episódio de um qualquer novela do Tozé Martinho. Talvez a “Roseira Brava” ou a “Olhos d’água”. Afinal, parece que é mesmo aquilo das chamas e de um senhor corado com uma forquilha. Tudo bem, não contesto. Mas sempre pensei que houvesse mais imaginação e que não se limitassem a seguir estereótipos.

O último segredo seria, com muito boa vontade interpretativa, o atentado ao Papa. Uma das coisas mais lixada do mundo moderno é a pouca pachorra para pessoas que dizem “pois, já sabia” depois das coisas acontecerem. É um bocadinho como aqueles concorrentes d’O Cofre que dizem “Ah, claro, bloqueei, mas sabia. Isto aqui é mais difícil que em casa” e ainda se riem com sobranceria. É triste.

Como se pôde, então, ir constatando, ser santo não exige nada de absolutamente extraordinário, muito menos uma assombrosa imaginação ou um afinadíssimo sentido de coerência. É que, de entre tudo o que se disse sobre a irmã Lúcia, a única coisa que, afinal, bate completamente certo, é credível e irrefutável, é a parte de ter sido uma outra mulher que lhe apareceu para contar segredos. Todos sabemos que faz perfeito sentido uma mulher fazer tudo e mais alguma coisa - neste caso, descer dos céus, ter a chatice de vir à terra -, só para calhandrar com outra.