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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Avareza

pedro, 27.02.07
















Ir ao supermercado é sempre descobrir algo mais sobre nós próprios. Fui ontem. Pouco depois de entrar, vi, em estreia mundial, um corcunda às compras. Finalmente. Sempre quis confirmar determinado aspecto. É que a melhor parte da vida de um corcunda, pensava eu e pude comprová-lo in loco, é quando eles têm que se deslocar a espaços comerciais. É impossível um corcunda ir ao supermercado e as pessoas não ficarem a pensar que é apenas um indivíduo que está a tentar levar coisas debaixo do casaco, tentando-se furtar a pagamentos. A questão é que, apesar disso, ninguém tem coragem de confrontar o corcunda e dissipar, de vez, essas fortes desconfianças. Logo, os corcundas podem levar sempre coisas ali na zona da bossa, que ninguém os vai obrigar a tirar o casaco. E eles aproveitam esta inacção, que eu bem sei. Eu faço ideia a quantidade de Bollycaos que aquele corcunda levava debaixo do casaco. Faz ele bem, têm que se aproveitar esses vazios legais. À pala deste esquema milenar é que o Quasímodo sempre foi indivíduo muito bem alimentado. O corcunda meteu-se na bicha da chamada caixa prioritária. E foi nesse instante que m’apercebi de algo absolutamente coiso. Esta caixa, diz o desenho, dá prioridade a três entidades. Entidade primeira: grávidas. Faz sentido. Estão sempre cansadas, com fome e vontade de lançar fluidos cá para fora. Quase sempre urina ou vomitado. Além disso, palavra de honra, rebentamento de águas deve ser a antepenúltima coisa que quero ver na bicha do supermercado. Entidade segunda: senhoras com bebés ao colo. E também faz sentido. Nada a apontar. Os bebés, quando choram, produzem um som particularmente enervante. E, quando não choram, obrigam as criaturas de supermercado a fingir um sorriso, a fingir que têm coração e que são pessoas. Uma chatice. Assim, há que dar prioridade à senhora que tem o bebé, para ver se se põem a andar e o supermercado poder voltar à sua acústica natural e à sua dinâmica de total ausência de sorrisos e felicidade. Entidade última e terceira: indivíduos em cadeiras de rodas. Mau, aqui é que me cheira a incoerência. É verdade que é melhor que daquela vez que me cheirou a incontinência, mas, ainda assim, é coisa para gerar desconfiança junto da minha individualidade. Mas desde quando é que esperar sentado é pior que esperar em pé? Que lógica distorcida é esta? Se está sentado, muita sorte tem esse sujeito em não lhe passarem todos à frente. Aliás, se for uma grávida em cadeira de rodas e com um bebé ao colo, devia mais é esperar na bicha como toda a gente. Se está sentada, o que estiver no colo e no útero deixa de contar como desvantagem. Cadeira de rodas anula bebés. Se está sentada, seja onde for, temos pena, mas a vida custa a todos e temos todos pressa, ò camarada. Assim com'assim, a descoberta pessoal de que falei lá mais acima, em nada está relacionada com estas ocorrências. Está, isso sim, relacionada com a constatação inequívoca de um facto. Não nego que já desconfiava ter uma muito peculiar natureza avarenta. Não avarenta no sentido mesquinho do termo, não no sentido do apego doentio ao carcanhol. Isso não tenho. É outra coisa. Tenho é algo que me, por exemplo, e entre outras coisas, me leva a que, quando sai demasiada pasta de dentes do tubo, eu tente meter o excesso lá dentro outra vez. Nunca consegui, é certo, mas pode ser que um dia consiga, senhores Colgate e Pepsodent e isso assim. Sim, porque eu bem sei que a vossa opção pelas bisnagas não é inocente. Nunca ninguém se questionou relativamente ao monopólio dos tubos no que aos dentífricos diz respeito, mas eu já. Esta indústria sabe bem que, mais dia, menos dia, vai acabar por sair pasta a mais e, com isso, está a privar o cliente daquilo que pagou e, claro, a obrigá-lo a comprar outro tubo mais cedo do que era suposto. Eu conheço bem os vossos subterfúgios que visam somente o lucro exploratório, Colgate e Pepsodent e assim isso. Portanto, quando sai pasta a mais, tento meter lá dentro a pasta que sobra. Sempre. Algum dia hei-de conseguir, senhores da indústria dentífrica, e depois logo vemos quem é que se ri. Vemos, vemos. Ora, pensava eu, a minha avareza operava apenas neste género de iniciativa, de que a pasta de dentes é mero exemplo ilustrativo. Mas não. Vai muito para além disso. A epifania no supermercado tornou-se visível na forma de uma caixa de Milfarin. Sim, eu estava com uma caixa de Milfarin na mão. Para quem não conhece tal realidade, adiante-se que a Milfarin é – nome científico – “uma Cerelac das baratas”. E, rai’s parta, quando a avareza dum indivíduo vai ao ponto da sua mente se convencer que a Milfarian, da Miluvit, é melhor que a Cerelac, da Nestlé, algo de muito forte o move. Algo que vai muito para além da tentativa desesperada de meter a pasta de dentes outra vez no tubo. Se consigo, sem sequer hesitar, levar Milfarin em vez de Cerelac, torna-se óbvio que tenho um brutal super-poder. Mais um, aliás. Estava o dia ganho. Abalei do supermercado, de punho em riste. Fui fazer uma capa. É o que me falta, que collants sempre usei. Já na rua, a caminho de casa, vejo o corcunda. Está a comer uma torta Dan Cake. Mas eu bem vi que só comprou uma caixa de fósforos. Assim é que é, malandro.

Preguiça

pedro, 19.02.07










Assim em termos de características de carácter mais terreno, por oposição àquelas de natureza mais sobrenatural que formigam na minha mui humilde pessoa, diria que sou um tudo-nada calão. Embora se trate de um dos sete pecados capitais, acaba por não ser nada de muito notório e vê-se facilmente diluído no mar de qualidades que banha a minha personalidade. É unânime que a preguiça é um conceito sempre discutível. Por exemplo, há quem defenda que deixar o rolo de papel higiénico com uma amostra ínfima de papel é razão suficiente para não ter que o trocar. Eu sou, objectiva e declaradamente, apologista desta tese. Porquê? Simples. A regra social dita, apenas e só, que quem acabar o papel é obrigado a trocá-lo por um rolo novo. Só isto. Não refere quantidades de papel. Menciona apenas um momento: o fim do rolo. Fim é fim. É nada. Nicles. Zero. O vazio. Se há papel, mesmo que mínimo, não é fim. Há pessoas que não percebem isto. Não percebem que não cabe ao indivíduo decidir, a seu bel-prazer, a existência de uma quantidade mínima aceitável de papel para se não ter a obrigação moral de trocar o rolo. Deixar isto ao critério de qualquer um seria a barbárie. E ninguém deve pactuar com barbáries que gravitem à volta de rolos de papel higiénico. A regra é clara. Ainda em relação ao fenómeno que algumas entidades apelidam de “preguiça”, é verdade que já me aconteceu, e bem mais que uma vez, ter que apanhar umas boas horas de má televisão porque não tinha o comando à mão. O erro foi meu, claro. Sentar-me sem certificar que o comando ficara alcançável pelo braço, ou pé, é erro de principiante. Mas, de quando em vez, lá calha. E não há outro remédio se não aguentar até que alguém venha e eu possa, finalmente, dizer “porra, ainda bem que chegaste! Passa-me o comando ou muda-me aí de canal.”. Se, quem entrou, inquirir, incrédulo, há quanto tempo estava eu à espera, digo “há pouquinho, há pouquinho. Ia-me levantar mesmo agora, mas ouvi-te chegar…”. É mentira, claro, mas já percebi que há para aí muito boa gente que gosta de atirar logo com a expressão “preguiçoso da merda” à mais pequenina coisa. E eu não estou para ser metralhado com ofensas gratuitas só por causa dos meus credos. Já agora, é bom que se diga que, bem pior que não ter o comando à mão, é aquela situação em que pegamos nesse genial utensílio, sentamo-nos e, quando tentamos ligar a TV, percebemos que alguém desligou a porcaria da caixa que mudou o mundo no botão. Isto não se faz a ninguém. Já há muito que devia ser uma alínea na Declaração Universal dos Direitos Humanos: a televisão é para deixar no stand-by! Não vá um indivíduo fazer tudo bem – ou seja, sentar-se munido do comando, sem mácula, sem erros de principiante, confiante –, e depois, desprovido de qualquer partícula de culpa, ver-se obrigado a sofrer daquela forma. Poucas sensações serão piores que a de carregar num comando à distância e perceber que a televisão está desligada no botão. Mas, vá lá, isto acontece-me muito excepcionalmente. A outra hipótese é mais recorrente. Lembro-me que, à espera que alguém viesse para me passar o comando, fui obrigado a ver um documentário, de absurda duração temporal, sobre o Michael Bolton. Até não foi tão pavoroso como se esperaria. Sempre deu para eu perceber que, durante uma boa meia dúzia de anos, andei a trocar o nome do Michael Bolton com o do Kenny G e vice-versa. Só se o documentário foi sobre o Kenny G e, nesse caso, ainda os confundo. Recordo ainda, com saudade putrefacta e auto-mutilativa, um “70x7” que vi de alto a baixo, onde se discutiram os novos caminhos do Ecumenismo. Numa outra ocasião, vi uma Taça Ibérica de hipismo inteirinha. Curioso é que, se me perguntassem antes, diria que não aguentava mais de cinco segundos a ver qualquer desporto equestre. O que, em certa medida, até se poderá considerar estranho, quanto mais não seja porque um desporto que consiste num gajo montado num cavalo a saltar muros, sebes e poças tem tudo para ser idolatrado. Uns cinco segundos, dizia eu, era o que aguentaria a ver hipismo. Mas naquele dia, com o comando a exigir locomoção, testei as minhas capacidades. E, já se sabe, um gajo, quando se lhe disparam os instintos mais básicos, faz coisas que nunca julgara serem possíveis. Isto é um bocadinho como aqueles indivíduos em África que não se importam que a ajuda alimentar seja sempre aquele milho ou não sei quê em pó em sacos de serapilheira ou um qualquer material sintético de funcionalidade idêntica. Nunca os vi torcer o nariz e dizer “porra, outra vez isto? Quando é que é bitoque?”. Ou gambas, vá. E porquê? Porque a necessidade, a carência e a míngua, isso fortalece as pessoas. Leva-nos a estádios comportamentais, níveis de sofrimento, que nunca julgáramos alcançáveis. É que, da mesma maneira que os africanos com fome têm que gramar com sacos e sacos daquele granulado amarelo, eu tive que aturar o hipismo, o “70x7” e o Kenny G. Num caso, temos a fome. No outro, a total ausência de vontade em me levantar para ir buscar o comando. Em ambos, o drama.

Dez cores

pedro, 08.02.07











É verdade que, de certa forma, já se poderá, nesta era de tamanha hibridez e frequentes “que caralho era aquilo?”, considerar um truísmo quando se diz que a identificação de um homem é acção que extravasa em muito a posse ou não de uma pila. Mas é. Clara e inquestionavelmente, é. Há indivíduos que têm pilas e não são homens. Os exemplos são por de mais conhecidos e enumerá-los seria um fastio para todos nós. Mas, pronto, aponte-se só um, para não deixar ninguém completamente à nora. Dina. Realce-se, também para que se evitem desde já boatos caluniadores a respeito de como adquiri esta informação, que eu e o urologista de Dina registamos o Euromilhões no mesmo sítio. E quem partilha frases como “olhe, meta-me aí dois da máquina”, acaba sempre por partilhar também estas coisas. Tal como existem indivíduos que, não tendo pilas, são homens. Gajos que tiveram acidentes e assim. Por isso é que nunca usei uma rebarbadora nu. Nem um berbequim. Mesmo lixadeiras, no máximo, só de cuecas. E já só uso calças com botões. Não confio em fechos-éclair e, até acaba por ser mais isto, não tenho grande confiança na minha capacidade de discernimento enquanto garante de “arrumar tudo antes de puxar o dito fecho para cima com toda a força”. É uma questão de cautela. Para lá dos acidentes, há que contar ainda com gajos que insistem em fazer apostas quando estão bêbados. Um bêbado acha que consegue sempre tudo. Um bêbado acha que consegue sempre tudo com a pila. Perante este encadeamento lógico de pressupostos, é fácil concluir que se perde muito falo em apostas de bêbados. Portanto, indivíduos sem pila podem perfeitamente ser homens no sentido ideológico do termo. Como indivíduos sem tomates também o podem ser, claro. Aliás, diga-se em abono da verdade que, e louvando ao mais alto nível, que é aqui, a coragem destes infligidos em particular, é preciso ter tomates para ser castrado. Literalmente. O desafio de, em pleno século XXI, definir hOmem, com “o” grande à Pinto da Costa versão João Domingos Silva Pinto, assentará com certeza numa série de critérios ou directrizes, mas, ficou patente, não se trata tão somente de uma questão de posse de pila ou privação da mesma. Isso é demasiado redutor. Mais que ter ou não ter, um homem define-se, e só para citar a forma mais perfeita de o fazer, pela sua erudição e sensibilidade quando se trata de lidar com o pitoresco mundo das cores. Falta delas, entenda-se, claro está, como é óbvio e logicamente. Delas, sensibilidade e erudição, logicamente, como é óbvio, claro está e entenda-se. Há algo no homem que o impede de processar mais que dez cores. Sendo elas, as tais processáveis, o verde, o vermelho, o branco, o preto, azul, amarelo, castanho, laranja, rosa e cinzento. É esta a discriminação de cores que o código masculino possibilita e admite. E isto é no máximo, embora existam homens cuja faculdade discriminatória relativamente a cores roce números bem abaixo da dezena. Bem, para além das dez, grená ainda é aceitável, devido ao lendário Desportivo de Chaves e ao seu equivalente espanhol, um tal de Barcelona. Roxo e lilás, por exemplo, já são cores que não encontram consenso entre os teóricos quando se trata de estabelecer uma relação causal entre o seu reconhecimento e a natureza masculina. Mas, se se tratar de algo para além destas, já de si rebuscadas, excepções, há muito que deixámos território masculino para entrar em condados femininos. Um homem, quando confrontado perante supostas cores como “azul furtivo”, “ciano”, “magenta” ou “turquesa”, dirá sempre, e respectivamente, “furtivo!?!? mas é azul na mesma, n’é?”, “hã?”, “hã?” e “hã?”. Ao passo que uma mulher, não só saberá de imediato que aquilo são cores, como ainda saberá facilmente de que cores se trata. E, pior que isso, até as conseguem definir por palavras. Os homens preferem, em tudo, as definições por “vou apontar para uma coisa que seja mais ou menos parecida”. Ora então, mais que decretar número de hormonas e outras balelas de suposto suporte científico, importa esclarecer que um homem saberá tanto o que raio é coral, carmesim, lavanda ou alfazema, como uma mulher alguma vez saberá realmente o que é um fora de jogo e todas as suas particularidades. É uma questão de tento. As cores e a Lei XI sempre disseram mais que qualquer laboratório alguma vez dirá.