Avareza
Ir ao supermercado é sempre descobrir algo mais sobre nós próprios. Fui ontem. Pouco depois de entrar, vi, em estreia mundial, um corcunda às compras. Finalmente. Sempre quis confirmar determinado aspecto. É que a melhor parte da vida de um corcunda, pensava eu e pude comprová-lo in loco, é quando eles têm que se deslocar a espaços comerciais. É impossível um corcunda ir ao supermercado e as pessoas não ficarem a pensar que é apenas um indivíduo que está a tentar levar coisas debaixo do casaco, tentando-se furtar a pagamentos. A questão é que, apesar disso, ninguém tem coragem de confrontar o corcunda e dissipar, de vez, essas fortes desconfianças. Logo, os corcundas podem levar sempre coisas ali na zona da bossa, que ninguém os vai obrigar a tirar o casaco. E eles aproveitam esta inacção, que eu bem sei. Eu faço ideia a quantidade de Bollycaos que aquele corcunda levava debaixo do casaco. Faz ele bem, têm que se aproveitar esses vazios legais. À pala deste esquema milenar é que o Quasímodo sempre foi indivíduo muito bem alimentado. O corcunda meteu-se na bicha da chamada caixa prioritária. E foi nesse instante que m’apercebi de algo absolutamente coiso. Esta caixa, diz o desenho, dá prioridade a três entidades. Entidade primeira: grávidas. Faz sentido. Estão sempre cansadas, com fome e vontade de lançar fluidos cá para fora. Quase sempre urina ou vomitado. Além disso, palavra de honra, rebentamento de águas deve ser a antepenúltima coisa que quero ver na bicha do supermercado. Entidade segunda: senhoras com bebés ao colo. E também faz sentido. Nada a apontar. Os bebés, quando choram, produzem um som particularmente enervante. E, quando não choram, obrigam as criaturas de supermercado a fingir um sorriso, a fingir que têm coração e que são pessoas. Uma chatice. Assim, há que dar prioridade à senhora que tem o bebé, para ver se se põem a andar e o supermercado poder voltar à sua acústica natural e à sua dinâmica de total ausência de sorrisos e felicidade. Entidade última e terceira: indivíduos em cadeiras de rodas. Mau, aqui é que me cheira a incoerência. É verdade que é melhor que daquela vez que me cheirou a incontinência, mas, ainda assim, é coisa para gerar desconfiança junto da minha individualidade. Mas desde quando é que esperar sentado é pior que esperar em pé? Que lógica distorcida é esta? Se está sentado, muita sorte tem esse sujeito em não lhe passarem todos à frente. Aliás, se for uma grávida em cadeira de rodas e com um bebé ao colo, devia mais é esperar na bicha como toda a gente. Se está sentada, o que estiver no colo e no útero deixa de contar como desvantagem. Cadeira de rodas anula bebés. Se está sentada, seja onde for, temos pena, mas a vida custa a todos e temos todos pressa, ò camarada. Assim com'assim, a descoberta pessoal de que falei lá mais acima, em nada está relacionada com estas ocorrências. Está, isso sim, relacionada com a constatação inequívoca de um facto. Não nego que já desconfiava ter uma muito peculiar natureza avarenta. Não avarenta no sentido mesquinho do termo, não no sentido do apego doentio ao carcanhol. Isso não tenho. É outra coisa. Tenho é algo que me, por exemplo, e entre outras coisas, me leva a que, quando sai demasiada pasta de dentes do tubo, eu tente meter o excesso lá dentro outra vez. Nunca consegui, é certo, mas pode ser que um dia consiga, senhores Colgate e Pepsodent e isso assim. Sim, porque eu bem sei que a vossa opção pelas bisnagas não é inocente. Nunca ninguém se questionou relativamente ao monopólio dos tubos no que aos dentífricos diz respeito, mas eu já. Esta indústria sabe bem que, mais dia, menos dia, vai acabar por sair pasta a mais e, com isso, está a privar o cliente daquilo que pagou e, claro, a obrigá-lo a comprar outro tubo mais cedo do que era suposto. Eu conheço bem os vossos subterfúgios que visam somente o lucro exploratório, Colgate e Pepsodent e assim isso. Portanto, quando sai pasta a mais, tento meter lá dentro a pasta que sobra. Sempre. Algum dia hei-de conseguir, senhores da indústria dentífrica, e depois logo vemos quem é que se ri. Vemos, vemos. Ora, pensava eu, a minha avareza operava apenas neste género de iniciativa, de que a pasta de dentes é mero exemplo ilustrativo. Mas não. Vai muito para além disso. A epifania no supermercado tornou-se visível na forma de uma caixa de Milfarin. Sim, eu estava com uma caixa de Milfarin na mão. Para quem não conhece tal realidade, adiante-se que a Milfarin é – nome científico – “uma Cerelac das baratas”. E, rai’s parta, quando a avareza dum indivíduo vai ao ponto da sua mente se convencer que a Milfarian, da Miluvit, é melhor que a Cerelac, da Nestlé, algo de muito forte o move. Algo que vai muito para além da tentativa desesperada de meter a pasta de dentes outra vez no tubo. Se consigo, sem sequer hesitar, levar Milfarin em vez de Cerelac, torna-se óbvio que tenho um brutal super-poder. Mais um, aliás. Estava o dia ganho. Abalei do supermercado, de punho em riste. Fui fazer uma capa. É o que me falta, que collants sempre usei. Já na rua, a caminho de casa, vejo o corcunda. Está a comer uma torta Dan Cake. Mas eu bem vi que só comprou uma caixa de fósforos. Assim é que é, malandro.