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Não vejo sempre. É às vezes, sem grande sistema ou método. E vejo porque vivo com a certeza que o Fernando Mendes vai, um dia, antes do Telejornal, ter um enfarte do miocárdio em pleno concurso. E, perdoem-me os puristas, mas eu acho que um enfarte do miocárdio entre cestas de chouriços e queijos e galhardetes de freguesias que acabam invariavelmente em “al” ou “eira”, é coisa com o seu interesse televisivo. Ontem vi. Como devem calcular, ainda não foi ontem que sucedeu tal espectáculo mediático. Mas, em compensação, vi pela primeira vez um concorrente preto. E, convém frisar, n’O Preço Certo nunca há concorrentes étnicos. Isto, claro, se não se considerar a extrema saloiice uma etnia. Extremamente simpático e incompreensível, o concorrente preto perdeu uma merda chamada vitogrill porque escolheu um 4 em vez dum 6. E fez 60 na roda. O gordo do Fernando Mendes é mas é um racista da merda. Já o vi a ajudar muita velha, que levam sistemas de Home Cinemas para casas de xisto na freguesia de não sei quê “al” ou “eira”. Um home cinema para se lixar todo com a humidade. Mas quando foi para dar um vitogrill ali para a Damaia, ‘tá quieto, ò mau. E eu, palavra de honra, nem detesto assim muito os gordos. Na minha infância, até aprendi algumas coisas interessantes com existências dessas. Sobretudo com um, que defendeu uma vez uma bolada dum grande do 9º ano com as fuças. E nós andávamos no 5º, caramba. Foi o herói da tarde. Não me lembro é do nome dele. Nem sei se tinha nome. Era o gordo, pronto. Foi esse gordo que, revelando uma sapiência muito particular, me ensinou que o Malteser que acabara de atravessar o chão do maior corredor da escola, ainda estava bom se, condição essencial, o assoprássemos com muita força e de olhos fechados. Muito Malteser me salvou este preceito. Dizia o gordo, “só sabe a pó e terra se quiseres, se acreditares nisso, Pedro”. E tinha razão. Também é verdade que esse gordo dizia, à boca cheia, que pão com tulicreme e frutas cristalizadas era muito bom. E ainda me lembro de, à pala das ideias dele, ter levado uma galheta porque fiz Cerelac com leite condensado cá
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Há dias fadados para alguma coisa que agora não me recorda. Um adjectivo, talvez. Coisas dessas assim gramaticais. Para mim, um dia que começa com o visionamento de uma daquelas reportagens sobre ataques de pitbulls é sempre um dia especial. Ainda mais especial se torna quando um dos intervenientes directos na peça noticiosa decide usar “pitbuis” como plural dessa simpática marca de bobis. Um dos meus sonhos, um daqueles por que mais anseio desde há considerável período temporal, é precisamente aquele que me permite ouvir, ao vivo, um destes gajos que diz coisas como “então é assim, tipo, os meus pitbuis são mansinhos e coiso”. Começar o dia a ouvir “pitbuis” é revigorante. Sabemos que algo de muito especial vai acontecer. Sente-se no ar. Antes de se avançar mais, convém lembrar que sou, estatística mais que oficial e de âmbito planetário, o indivíduo que mais pessoas famosas encontra no metro. Nem me esforço minimamente para manter tal registo. É um dom. Uma dádiva. Não se consegue explicar, muito menos ensinar aos menos dotados na área. Pois bem, sabendo eu que o dia ia ser especial, corri logo para o metro. Estava mais que visto que ia encontrar um famoso incomparável. Não m’enganei, mas, verdade, verdadinha, ainda penei. Entrei, olhei, esperançoso, e o máximo que vi foi uma Non Stop. Ainda por cima com remela. Às duas da tarde. Eu também tinha, mas eu tinha acordado há 15 minutos. E, para além disso, a pasta de dentes seca que costumo ter em cerca de 80% da bochecha tem tendência para desviar atenções das remelas e afins. Felizmente, o panorama melhorou. Melhorou e muito. Foi andar mais um bocadinho, olhar para o lado e pumbas! Rão Kyao. Vestindo apenas branco, claro. Parece que, tal como em todas as fotografias que alguma vez lhe tiraram e em todas as suas aparições televisivas, vinha do treino de capoeira ou o Raul Indipwo tinha-lhe entornado vinho num jantar lá em casa e emprestado uma das suas toilettes imaculadamente alvas. Quando era mai’ novo, à eterna vestimenta branca de Rão, eu associava ainda uma outra característica. Comer pevides. Não sei porquê, mas pevides e Rão eram realidades indissociáveis. De certa forma, ver Rão, e não ver pevides, foi uma pequena desilusão. Apesar disso, um momento para sempre recordar. Acabara de ver Rão Kyao, e a minha posição de líder incontestado na arte de encontrar pessoas famosas no metro estava ainda mais cimentada. Estava-me a correr bem o dia, e estava eu deserto para encontrar alguém para poder dizer “Eh pá, vi o Rão Kyao no metro”, quando o impensável acontece: sentado num daqueles bancos de três lugares, e quando fazíamos o trajecto Anjos – Arroios, avisto Júlio Pereira. Absolutamente assombroso. Rão Kyao e Júlio Pereira. No mesmo dia. O senhor flauta de bambu e o senhor cavaquinho no mesmo dia. No mesmo metro, na mesma linha. Não fosse o Rão ter saído no Martim Moniz e eu podia mesmo ter dito “Júlio, sabes quem está ali a ler o Destak? O Rão! O Rão, carago!”. Não se pode ter tudo e convenhamos que ver Rão e Júlio, seguramente dois dos ícones mais complicados de avistar em transportes subterrâneos, num mesmo dia e espaçados por um par de minutos, já é avaria para fazer corar muito gajo com a mania que é uma autoridade nesta cena de ver pessoas famosas no metro. O dia estava ganho. Andei mais orgulhoso que naquele dia em que, na primeira semana de aulas do 5º ano, levei a minha espada do He-man e decapitei um Skeletor que havia na sala de Ciências. Era um Skeletor todo nu, mas eu reconheci-o na mesma. O ingrato do professor é que me queria dar negativa porque, dizia ele, o material escolar não é para ser vandalizado. Os heróis sempre foram incompreendidos. Onde é que matar o Skeletor é vandalizar material escolar? Enfim. Por conseguinte, o dia estava-me a correr às mil maravilhas. O meu orgulho estava nos píncaros. Porque um gajo, mesmo quando já sabe que é o melhor, precisa destas provas. Um gajo precisa dum Rão Kyao e dum Júlio Pereira no mesmo dia. Como o Scorsese, apesar de saber que é bom a fazer filmes e que ainda há raparigas de vinte e poucos anos que não se importariam de o ver nu, precisava do Oscar. A moral desta história de vida é simples, mas arrebatadora. Pá, não subestimes um dia que começa com alguém a dizer "pitbuis" na televisão. São abençoados, esses caralhos.
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Há alturas em que a minha rua parece uma zona de guerra. Essas alturas podem-se, com absurda propriedade, apelidar de “quase sempre” ou, em termos mais científicos, “às vezes é favor, ò amigo”. Posso começar, como nota introdutória, por antecipar desde já que o racismo, a xenofobia e a intolerância religiosa me chocam. Chocam-me porque não sei como é que é possível detestar as pessoas apenas pela sua cor, nacionalidade ou credos, quando há milhentas razões para detestar as pessoas. A minha rua é uma zona de guerra nesse sentido. Há uma constante guerra de pessoas que me querem enervar, que querem que eu as deteste. Que lutam por isso. O dia na minha rua começa pela paragem num café qualquer. Seja ele qual for, há sempre um gajo que abana o saco do açúcar umas cinquenta vezes a mais que aquilo que é humanamente tolerável. O som dum pacote de açúcar a ser demasiadamente abanado torna-se aflitivo. Fica-se sempre a pensar “bem, o gajo só vai abanar mais esta vez, é impossível ir abanar uma outra vez”. E aquilo só pára quando já está tatuado no cérebro, quando já estamos a pensar se um lança-chamas é coisa para se encontrar numa loja de ferragens e, se sim, se nos emprestarão um só para ir ali ao café fazer uma coisa. Um destes indivíduos que abana muito o pacote de açúcar é normalmente acompanhado por mais dois virtuosos intérpretes dessa arte que é o meter nervos. Um que se insere na mesma família deste primeiro, porque opera ainda na ambiência da bica, e que insiste em mexer o café tantas, mas tantas vezes, que aquilo até faz remoinho. E aquele barulhinho constante da colher a bater na cerâmica da chávena é, para não ser ordinário, enervante com’ò caralho. Foda-se. Curiosamente, o urso que abana muito o pacote, mexe pouco o café, ao passo que o camelo que mexe muito o café, abana pouco o pacote. Curioso, no mínimo. O terceiro espécime, o que completa este maravilhoso trio das sonoridades, é aquele que está a fazer as palavras-cruzadas e carrega neuroticamente na caneta. Neuroticamente significa à volta de 200 cliques por minutos. Parece que a caneta está a ter uma dupla taquicardia. Seja qual for o café que eu escolha, estas três entidades, embora assumindo manifestações físicas diversas, estão sempre lá. A guerrear-se para ver quem enerva mais. Na rua, pode-se afirmar que, e recorrendo a um metaforismo excepcional, se as coisas que enervam forem encaradas como balas, está-se sob o maior fogo cruzado de que alguma vez há registo. Posso até destacar duas entidades que parece que fazem plantão na minha rua, a disparar feitos parvinhos. Por exemplo, o monhé que, todos os dias, me quer oferecer um panfleto do restaurante indiano que vende comida de basicamente todo o lado. É um monhé especialmente caricato porque veste sempre toilettes 100% ganga. Calça, casaco e camisa. Já o vi de chapéu de ganga e tudo, mas deve-o ter perdido, que já há uns tempos que não o usa. Todos os dias ele me tenta dar um panfleto e eu, todos os dias, abro os braços e faço uma expressão de “foda-se, Apu, eu moro aqui, porra! Temos que passar todos os dias por isto?”. Não vale de nada. É estar a abrir os braços e fazer expressões para o boneco. Depois, temos o pessoal das pranchetas. Para quem não é muito versado nesta coisa das coisas e afins, uma prancheta é um utensílio, quase sempre em cartão ou plástico rançoso, que permite colocar sobre si uma folha de papel e escrever sobre esta última. Muitas vezes tem até uma bodega em ferro que permite segurar a folha, para impedir que esta caia ou saia a esvoaçar. Definida a coisa, por certo que ninguém arrebitará cachimbo quando se disser que nunca, em qualquer ponto do planeta, alguém se sentiu melhor ou pensou que valeu a pena depois de ter sido abordado por um indivíduo com uma prancheta. Na minha rua há sempre pelo menos um destes. Driblá-los é lixado, mas eu sou o George Best desta cena. Seja como for, cansa. Também cansava o Best. E enerva. Oh, se enerva. Sobretudo quando os gajos nos tentam encurralar. Ou quando eles correm. Sim, porque se eu sou o Georgie Best do drible a pessoal das pranchetas, há deles que são o Hans-Peter Briegel. Correm e lutam. Saturam o alvo. Já houve bastas ocasiões em que, ultrapassado este cenário de guerra, constato que me havia esquecido de algo imprescindível
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