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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Chocolate Jesus

pedro, 30.03.07

Parece que há um artista – e artista no sentido de cultivador das belas-artes e não no sentido “olha-me bem para aquele artista a tentar-se meter na nossa faixa agora que a dele está parada” – que exporá, algures durante a próxima semana, uma escultura de Jesus na cruz. A inovação consiste no facto deste Jesus ser feito de chocolate de leite, ter um metro e oitenta e não ter cobertura da cintura para baixo. E, quando se fala em cobertura, não é de chantily, amêndoa ralada ou bocadinhos de nozes. Ou aquelas bolinhas prateadas e muito duras que ninguém gosta. É “sem cobertura” como em “ter a pila e o rabo ao léu”. A escultura, como não podia deixar de ser, terá o sugestivo título de “My sweet lord” e as associações de cristãos já se fizeram ouvir, identificando a exposição como uma das maiores afrontas contra a sua sensibilidade. Não percebo bem de que se queixam estes senhores. Primeiro, pensei que fosse porque, sendo tudo aquilo em chocolate, alguém acabasse por ir comer Jesus. O que soa mal, mas só até nos lembrarmos que, na missa, todos os que comungam estão a ingerir o corpo de Deus. Se, na escala de super poderes, Deus é mais forte que Jesus, isto perde logo alguma força argumentativa. É que se ninguém se ofende por comerem Deus, reveste-se de alguma dinâmica parvinha o facto de se ofenderem por, hipoteticamente, se ir comer Jesus. De mais a mais, fosse o corpo de Deus que se dá nas missas feito de chocolate e os católicos praticantes seriam em bem maior número. Eu, com chocolate em vez daquela massa de trigo sem fermento que servem nas missas, iria lá bem mais vezes. Aliás, estaria lá sempre se dessem chocolate e se acabassem com aquele costume horrível de ter que cumprimentar as pessoas que estão ali nos nossos arrabaldes. Nunca percebi esse costume e, quando era mais novo, nunca conseguia pressentir que isso se aproximava. Aquilo vinha sempre do nada. Num segundo o padre estava a cantar ou a dar sermões e no outro já eu tinha duas velhas a lambuzarem-me a cara com baba e buços tipo velcro meio gasto. Nunca me conseguia safar dessa parte. Mas nem sei se ainda se faz isso. Agora, e voltando à indignação cristã face à estátua, só se aquilo ofende porque Jesus está nu. Só se é isso. Mas, em termos legais, também não vão longe com essa argumentação. Nas regras que Deus estabeleceu aqui há coisa de mais de mil anos e tal, não há nada sobre ocorrências deste género. Há, isso sim, coisas que os cristãos têm seguido à risca, destacando-se dos demais o célebre “Não matarás” ou o “Não roubarás”. Cristão a matar e a roubar nunca se viu, claro. Mas nada de “Pá, não esculpirás uma estátua do meu filho todo nu da cintura para baixo e em chocolate de leite”. Isso não vem no livro das regras. Mas isto pode ter um outro prisma, completamente distinto. A questão é que as regras foram escritas em tábuas de pedra e, Deus ou comum mortal, isso é tarefa para nos dar cabo dum pulso. Eu, formado oficiosamente em direito – vi algumas séries de advogados, inclusive uma nacional que dava na SIC quase de manhã –, acho que as associações de cristãos podiam pegar por aqui. Deus não escreveu a parte do “Pá, não esculpirás uma estátua do meu filho todo nu da cintura para baixo e em chocolate de leite” porque já estava todo apanhadinho do pulso e aquilo já lhe estava a chegar ao ombro. Sim, pela minha experiência em termos de tribunais e casos da mais variada índole, julgo que a defesa das organizações cristãs passará inteiramente pela suposição que Deus terá dito “Moisés, olha, ficam dez, pá, que já ‘tou cansado. O resto fica subentendido, vá. Queres boleia para baixo?”.

O orgulho de Comte

pedro, 30.03.07












Fala-se muito em altruísmo e isso. Mas, a maior parte das vezes, refere-se o conceito sem saber o que é, afinal, o verdadeiro e puro altruísmo. Eu, desde miúdo que bem sei o que é. Para ser mais exacto, desde que, no 6º ano, o meu colega Paulo, um gajo que tinha um dente da frente lascado e que chorou baba e ranho quando ouviu que a gaja dos 4 Non Blondes tinha morrido, me ofereceu um bocado de Kit Kat. Mas, atenção, estamos a falar dum senhor bocado. Eu, quando disse “ó Paulo, dás-me um conhe de chocolate?”, estava longe de imaginar o que se iria passar a seguir. O Paulo não só anuiu, como, acto quase contínuo, parte uma barra de Kit Kat para mim. Uma barra. Sendo que o chocolate em questão tem apenas quatro. Vinte e cinco pontos percentuais do chocolate para um mero colega de turma. Fiquei estarrecido. E o Paulo, no meu coração, será sempre o exemplo supremo de altruísmo. Sim, que as Madres Teresas e as Princesas Dianas nunca me deram nada. E o que há mais para aí são invejosos que ficam muito ofendidos quando pedimos para tirar um M&M e acabamos por tirar uns quatro, e abusadores que tiram quatro M&M quando nos pediram só um. Canalhice há muita. Paulos é que há poucos. Vem isto a propósito de, muito recentemente, eu ter sentido uma espécie de urgência interior para brincar um bocadinho a isso de ajudar os menos afortunados e assim. Por duas razões. Primeiro, em jeito de homenagem ao Paulo e à barra de Kit Kat, como prova de que, para além dum bocado de chocolate, eu tinha sacado uma importante lição de vida. Segundo, eu devo ser o indivíduo que mais vezes diz “eh pá, não tenho mesmo nada, juro” a mitras e afins para, nem cinco minutos passados, eles me apanharem em flagrante a comer um gelado dos grandes. Palavra de honra que já me deve ter acontecido algumas cem vezes. Portanto, comecei a sentir uma pequena impressão que me impelia a ajudar. E, depois de muito reflectir, concluí que a melhor ajuda que posso dar é deixar um par de conselhos aos sem-abrigo. Aqui, na Internet. Sim, não ia estar a ajudar um sem-abrigo mesmo na rua. Não fosse o gajo querer dar-me um passou-bem de agradecimento incontido. Não me vou arriscar a esse ponto. Mas deixarei dicas estupendamente válidas e revolucionárias. Começo por aconselhar a leitura do Diário Económico aos sem-abrigo. Faz-me confusão que não o façam já, mas enfim. Seria de esperar que eles fossem dos mais interessados no estado da economia, mas aparentemente tal não se verifica por aí além. Eu nunca vi nenhum sem abrigo a ler o Diário Económico e acho que terá que começar por aí. Em vez de lerem o Metro e o Destak, leiam o Diário Económico. Demonstra interesse e vontade em sair da rua. Têm que ser vocês a mostrar força de vontade, cambada. A economia não se vai interessar por vocês enquanto vocês não se interessarem por ela. O meu segundo engenhoso conselho diz respeito à mítica revista CAIS. A CAIS é a revista de, canta o slogan, “auxílio e apoio ao sem-abrigo”. Sim, isso é tudo muito bonito, mas que faz a CAIS? Para começar, a revista CAIS custa dois euros. Quatrocentos paus. Para ler uma revista que mais parece um livro, cheio de letras e assuntos para pensar. Assim não vão lá. Porque é que, em vez duma CAIS cara e chata, não vendem a Maria, que é tão mais barata e tem fotos de pessoas e notícias de calhandrices e novelas, e consultórios sexuais e até escolhem o bebé do mês que, por acaso, até é sempre feio como tudo e se chama constantemente Rafael, Micael ou Tomás? A Maria é coisa p’ra custar uns 250 paus e aposto que venderia bem mais que a CAIS. É altura de abrir os olhos, sem-abrigos. Ainda não perceberam que isto é uma economia de mercado, caramba? Tenham cabecinha. A CAIS não rende. É cara e ninguém compra. Vendam Marias, baratas e populares. É que, como se não bastasse já, a CAIS, que se diz de auxílio ao sem-abrigo, nem um anúncio de casas para arrendar apresenta nas suas páginas. Nem um. Nem para um T-0 em Pina Manique ou esses sítios. Que eu saiba, os sem-abrigo precisam é de casa. Não de artigos com muitas letras e palavras grandes, daquelas de ir ver ao dicionário. Mas a CAIS pensa nisso e publica anúncios? Uma porra é que publica! Pior! Uma vez que não trazem anúncios de casas, até podiam tentar compensar de outra forma. Por exemplo, revelando por onde estão espalhados os Ecopontos azuis. Não me parece complicado de perceber que os Ecopontos azuis, face à conjectura actual, são assim uma espécie de imobiliária dos sem-abrigo e acho que só ficava bem à CAIS informar os coitados relativamente à localização dos mesmos. Uma vez por outra, até revelar que Ecopontos são mais profícuos em termos de caixotes de frigoríficos ou arcas e uma ou outra máquina de lavar. Este tipo de informação poupava-lhes trabalho e maçadas, libertando tempo para outras tarefas de sem-abrigo. Inclusive para passatempos, sei lá, cenas variadas. Pronto, sinto que fiz a minha parte. Fossem todos como eu e este mundo seria um sítio bem preferível. Concordo, é o que eu acho.

Bater, tocar, chamar

pedro, 26.03.07










Isto é como em tudo, basicamente. Um gajo só dá por falta das coisas quando não as tem. É um rifão especialmente verdadeiro quando se trata de braços, pernas ou aqueles dentes laterais que só se vêem quando abrimos muito a boca a rir. Mas eu ainda tenho isso tudo. Estava só a dar um exemplo genérico, de mera, e até boçal, funcionalidade ilustrativa. E a colocar-me no lugar dessas pessoas, as que não têm braços, pernas ou aqueles dentes laterais que só se vêem quando abrimos muito a boca a rir, para criar alguma proximidade com aqueles que sofrem dessas intempéries. Só isso. Sou, como se as evidências não o demonstrassem e fosse necessária esta declaração, indivíduo com elevadas competências para lidar com pessoas diferentes. O que m’aconteceu, ainda recentemente, foi perceber que o apito do carro, essa funcionalidade que, todos os dias, todos nós tomamos como dado adquirido, estava avariado. Ora não produzia nenhum som, ora fazia aquele “fimmnheca” extremamente enconado. A princípio, não liguei. Para que preciso eu do apito? Vai para mais de dois anos que também não tenho piscas, com certeza que também consigo viver sem apito. Com os piscas, verificou-se o seguinte. Primeiro, começaram por se lixar ao nível da função que é comummente identificada como “o teu pisca desfaz?”; que, em traços gerais, consiste na capacidade do pisca se desligar quando se completou a mudança de direcção. Lixou-se o desfazer do pisca, e o que, não raras vezes, se verificava era eu fazer umas boas dezenas de quilómetros com o pisca do lado direito sempre ligado. Calhou ser sempre o direito porque, para entrar aqui na estrada principal ao pé de casa, eu mudo de direcção à direita. Mais tarde, o pisca deixou simplesmente de funcionar. Não me fez confusão nenhuma e até encarei aquilo como uma conquista por parte da minha liberdade individual. Afinal de contas, para que raio quero eu aquilo? Agora tenho que avisar quem vem atrás para onde vou? Devo-lhe satisfações, é? Era o que mais faltava. Não são minha mãe e metam o bedelho nas vossas vidas, alcoviteiras ao volante. Encarei isto como uma dádiva. Com o pisca lixado, eu escapava a mais um dos expedientes de controlo a que “eles” nos submetem. Quando se me escavacou o apito, lembrei-me disto. Que podia ser outra benesse. Porque, bem vistas as coisas, eu nem usava assim tanto o apito. De entre a tralha de utilidades ao apito associadas, nunca precisei de nenhuma por aí além. Já por várias vezes podia ter recorrido à função preventiva do apito, aquela que, defendem os técnicos, permite que se evitem acidentes. Mas, ao invés de apitar, há uma urgência interior que nos impede de o fazer e que a questão “Pá, este gajo não vai recuar até me bater, de certeza” define exemplarmente. A curiosidade é sempre mais forte. Depois vêm-me com coisas do género “Mas não me viu recuar? Porque é que não avisou?”. Não avisei porque queria ver se ia mesmo recuar até me bater. Nunca pensei que fosse tão parvo. Não se me está a perceber e “não, o pára-choques ainda não tinha estes arames antes de você me bater”. É que me parece sempre improvável que tal – o recuo até me bater - aconteça e, por isso, sinto-me sempre tentado a comprovar. Isto é como quando temos uma pedra na mão e, ao longe, vemos um velho de bicicleta. É claro que pensamos sempre “daqui, com o velho em movimento, nunca na vida eu lhe conseguia acertar na cabeça”. Mas atiramos sempre, como é óbvio. É por estas e por outras que a empiria abafa sempre qualquer teoria. Um gajo pode ler em muito lado que é quase impossível acertar com um calhau na cabeça dum velho de bicicleta. Mas, até experimentarmos, vamos ficar sempre na dúvida. Por isso é que o carácter preventivo do apito sempre foi inútil para mim. Mas o apito, segundo consta, serve para mais coisas. A questão é que, por exemplo, também nunca senti necessidade de recorrer ao apito para assinalar raparigas airosas que se pavoneiam nos passeios. Não acredito que seja um método eficaz e, para além disso, não alinho em estratagemas batoteiros. Quanto muito, sou gajo para usar uns óculos escuros para poder olhar para os decotes à vontade. Sim, porque o “olhar para o horizonte” dá muita barraca e, no que à eficiência diz respeito, ainda deixa bastante a desejar. Acho é que qualquer coisa para além disso, dos óculos escuros, já me cheira a violação. Depois temos as buzinadelas do “o meu clube ganhou” e “estamos num casamento e isto é muita giro, ‘bora apitar feitos parvinhos que ninguém vai achar que parecemos uns retardados mentais com a roupa do domingo”. Também nunca me deu para isso. É o meu feitio, pronto. Finalmente, temos as funções “Então, c******?!?!” que, para efeitos de está-me a apetecer e faço o que quiser, englobarão todas as manifestações de raiva. Aqui, nas manifestações de raiva, encontramos coisas como “então e o pisca, ò palhaço?”, “mas esta merda não anda porquê, f***-**?”, “’´tá verde é para nós, camelo da m****!” ou “olha-me para este coxo de óculos de sol a passear o cão no meio da estrada!”. Não concordo nada com o apito enquanto veículo de raiva acumulada. Quer dizer, não concordava com o apito enquanto vector de fúria. Até ao dia em que uma besta me trancou o carro. A situação é clássica. Carro com os quatro piscas ligados não me deixa sair. Mandam as regras do bom senso e boa educação que, qual sociopata, se mantenha o dedo enterrado no apito enquanto o gajo que tranca resolva aparecer. Eu bem queria, mas qual quê! Estar trancado e ter que esperar, pacientemente, sem poder buzinar como se tivéssemos cinco anos é horrível, digo-vos eu já aqui e agora. Ainda para mais, sabendo eu que, enquanto não apitasse feito demente, o dono do outro carro ia sempre estar a pensar “tenho a viatura em 2ª fila, mas ainda ninguém apitou, por isso posso estar aqui no paleio à vontade em vez de me despachar”. Eu, palavra de honra, por esta altura, daria uma nádega para ter um apito que funcionasse. Não minha, obviamente. Podia ser a nalga de qualquer um dos cerca de dez parvalhões que, enquanto eu esperava dentro do carro, me diziam “olhe que tem o cinto e o casaco entalados na porta”. Ai sim? E irem bardamerda mais os vossos avisos? Quero é um apito. Se faz favor, claro.

P.S: Para os mais dados a essas coisas das curiosidades, aproveito para esclarecer que o título deste coiso é um plágio descarado do título de uma cantiga dos Onda Choc, nomeadamente uma que está presente em “Passeando pela praia”, álbum de 1990 ou outro ano. O segundo facto digno de estupendo registo é a questão de algum asneiredo estar dissimulado entre astericos. Tal ocorrência vem no seguimento de um “não digas tantas asneiras, filho” emitido em tom de desespero pela minha mãe. E sim, consegui convencer a minha mãe que “enconado” e “bardamerda” não são asneiras. Desafio-vos a conseguirem o mesmo com as vossas mães. Ou, se forem órfãos, com o pároco da vossa freguesia.

Gula

pedro, 20.03.07












Não vejo sempre. É às vezes, sem grande sistema ou método. E vejo porque vivo com a certeza que o Fernando Mendes vai, um dia, antes do Telejornal, ter um enfarte do miocárdio em pleno concurso. E, perdoem-me os puristas, mas eu acho que um enfarte do miocárdio entre cestas de chouriços e queijos e galhardetes de freguesias que acabam invariavelmente em “al” ou “eira”, é coisa com o seu interesse televisivo. Ontem vi. Como devem calcular, ainda não foi ontem que sucedeu tal espectáculo mediático. Mas, em compensação, vi pela primeira vez um concorrente preto. E, convém frisar, n’O Preço Certo nunca há concorrentes étnicos. Isto, claro, se não se considerar a extrema saloiice uma etnia. Extremamente simpático e incompreensível, o concorrente preto perdeu uma merda chamada vitogrill porque escolheu um 4 em vez dum 6. E fez 60 na roda. O gordo do Fernando Mendes é mas é um racista da merda. Já o vi a ajudar muita velha, que levam sistemas de Home Cinemas para casas de xisto na freguesia de não sei quê “al” ou “eira”. Um home cinema para se lixar todo com a humidade. Mas quando foi para dar um vitogrill ali para a Damaia, ‘tá quieto, ò mau. E eu, palavra de honra, nem detesto assim muito os gordos. Na minha infância, até aprendi algumas coisas interessantes com existências dessas. Sobretudo com um, que defendeu uma vez uma bolada dum grande do 9º ano com as fuças. E nós andávamos no 5º, caramba. Foi o herói da tarde. Não me lembro é do nome dele. Nem sei se tinha nome. Era o gordo, pronto. Foi esse gordo que, revelando uma sapiência muito particular, me ensinou que o Malteser que acabara de atravessar o chão do maior corredor da escola, ainda estava bom se, condição essencial, o assoprássemos com muita força e de olhos fechados. Muito Malteser me salvou este preceito. Dizia o gordo, “só sabe a pó e terra se quiseres, se acreditares nisso, Pedro”. E tinha razão. Também é verdade que esse gordo dizia, à boca cheia, que pão com tulicreme e frutas cristalizadas era muito bom. E ainda me lembro de, à pala das ideias dele, ter levado uma galheta porque fiz Cerelac com leite condensado cá em casa. De lamparinas precisou ele, enquanto andou a ganhar massa adiposa. Há quem defenda que uma boa palmada na altura certa nunca fez mal a ninguém. Eu defendo que sim. Se calhar, fazia apenas um pequeno reparo. Ou dois. Um casal de reparos. No caso do gordo, esta sentença popular ganharia eficácia extrema se se substituísse “boa palmada” por “sova de mangueira” e “na altura certa” por “sempre que pedir uma bolacha”. Se uma campainha pôs aqueles cães russos a salivar, uma sova de mangueira é coisa para pôr um potencial gordo na linha. Esse gordo em particular, à laia de justificação, dizia que era assim, “forte”, porque tinha um problema glandular. Mais que serem gordos, suarem no Outono e respirarem muito alto, enervam-me as desculpas. Glandular? Só se glandular fosse alguma marca de chocolate que se comia na altura. No supermercado perto de casa só havia Táxi, Raider e sempre a mesma caixa de Bombocas, mas o gordo morava perto dum hiper. Nunca se sabe o que por lá se vendia. Cada vez que vejo um, lembro-me desse gordo. São estas coisas que perduram. Defender um remate dum grande do 9º. Com as fuças. E também me lembrei dele há dias, quando li uma notícia sobre obesidade mórbida. Obesidade mórbida é, está à vista de todos, um nome simpático. Como se exige, pouco pesado e nada agressivo. Dantes, tínhamos gordos. Depois obesos. Depois obesos mórbidos. A seguir, às tantas, vamos ter obesos mórbidos “eh pá, quantos urinóis ocupa este gajo?”. Mas é inegável que um gordo dá sempre jeito. Para ir à baliza, claro. Para o cão do vizinho morder em alguém primeiro e nós pudermos fugir, como é óbvio. Mas também noutros contextos. Em acidentes de aviação, por exemplo. Se, como naquele filme com aquele gajo que fez o coiso, o avião cair na neve e der a fome aos passageiros, come-se o gordo. Além de ter mais alimento, também come mais. É a lógica de mercado. Churrasco no gordo. Se a gula é pecado capital, ao menos que sirva para se poderem comer gordos quando pessoas normais estão presas na neve. Mas comer sem depois ter chatices com a polícia e assim.

Há dias assim

pedro, 12.03.07












Há dias fadados para alguma coisa que agora não me recorda. Um adjectivo, talvez. Coisas dessas assim gramaticais. Para mim, um dia que começa com o visionamento de uma daquelas reportagens sobre ataques de pitbulls é sempre um dia especial. Ainda mais especial se torna quando um dos intervenientes directos na peça noticiosa decide usar “pitbuis” como plural dessa simpática marca de bobis. Um dos meus sonhos, um daqueles por que mais anseio desde há considerável período temporal, é precisamente aquele que me permite ouvir, ao vivo, um destes gajos que diz coisas como “então é assim, tipo, os meus pitbuis são mansinhos e coiso”. Começar o dia a ouvir “pitbuis” é revigorante. Sabemos que algo de muito especial vai acontecer. Sente-se no ar. Antes de se avançar mais, convém lembrar que sou, estatística mais que oficial e de âmbito planetário, o indivíduo que mais pessoas famosas encontra no metro. Nem me esforço minimamente para manter tal registo. É um dom. Uma dádiva. Não se consegue explicar, muito menos ensinar aos menos dotados na área. Pois bem, sabendo eu que o dia ia ser especial, corri logo para o metro. Estava mais que visto que ia encontrar um famoso incomparável. Não m’enganei, mas, verdade, verdadinha, ainda penei. Entrei, olhei, esperançoso, e o máximo que vi foi uma Non Stop. Ainda por cima com remela. Às duas da tarde. Eu também tinha, mas eu tinha acordado há 15 minutos. E, para além disso, a pasta de dentes seca que costumo ter em cerca de 80% da bochecha tem tendência para desviar atenções das remelas e afins. Felizmente, o panorama melhorou. Melhorou e muito. Foi andar mais um bocadinho, olhar para o lado e pumbas! Rão Kyao. Vestindo apenas branco, claro. Parece que, tal como em todas as fotografias que alguma vez lhe tiraram e em todas as suas aparições televisivas, vinha do treino de capoeira ou o Raul Indipwo tinha-lhe entornado vinho num jantar lá em casa e emprestado uma das suas toilettes imaculadamente alvas. Quando era mai’ novo, à eterna vestimenta branca de Rão, eu associava ainda uma outra característica. Comer pevides. Não sei porquê, mas pevides e Rão eram realidades indissociáveis. De certa forma, ver Rão, e não ver pevides, foi uma pequena desilusão. Apesar disso, um momento para sempre recordar. Acabara de ver Rão Kyao, e a minha posição de líder incontestado na arte de encontrar pessoas famosas no metro estava ainda mais cimentada. Estava-me a correr bem o dia, e estava eu deserto para encontrar alguém para poder dizer “Eh pá, vi o Rão Kyao no metro”, quando o impensável acontece: sentado num daqueles bancos de três lugares, e quando fazíamos o trajecto Anjos – Arroios, avisto Júlio Pereira. Absolutamente assombroso. Rão Kyao e Júlio Pereira. No mesmo dia. O senhor flauta de bambu e o senhor cavaquinho no mesmo dia. No mesmo metro, na mesma linha. Não fosse o Rão ter saído no Martim Moniz e eu podia mesmo ter dito “Júlio, sabes quem está ali a ler o Destak? O Rão! O Rão, carago!”. Não se pode ter tudo e convenhamos que ver Rão e Júlio, seguramente dois dos ícones mais complicados de avistar em transportes subterrâneos, num mesmo dia e espaçados por um par de minutos, já é avaria para fazer corar muito gajo com a mania que é uma autoridade nesta cena de ver pessoas famosas no metro. O dia estava ganho. Andei mais orgulhoso que naquele dia em que, na primeira semana de aulas do 5º ano, levei a minha espada do He-man e decapitei um Skeletor que havia na sala de Ciências. Era um Skeletor todo nu, mas eu reconheci-o na mesma. O ingrato do professor é que me queria dar negativa porque, dizia ele, o material escolar não é para ser vandalizado. Os heróis sempre foram incompreendidos. Onde é que matar o Skeletor é vandalizar material escolar? Enfim. Por conseguinte, o dia estava-me a correr às mil maravilhas. O meu orgulho estava nos píncaros. Porque um gajo, mesmo quando já sabe que é o melhor, precisa destas provas. Um gajo precisa dum Rão Kyao e dum Júlio Pereira no mesmo dia. Como o Scorsese, apesar de saber que é bom a fazer filmes e que ainda há raparigas de vinte e poucos anos que não se importariam de o ver nu, precisava do Oscar. A moral desta história de vida é simples, mas arrebatadora. Pá, não subestimes um dia que começa com alguém a dizer "pitbuis" na televisão. São abençoados, esses caralhos.

A rua

pedro, 06.03.07
















Há alturas em que a minha rua parece uma zona de guerra. Essas alturas podem-se, com absurda propriedade, apelidar de “quase sempre” ou, em termos mais científicos, “às vezes é favor, ò amigo”. Posso começar, como nota introdutória, por antecipar desde já que o racismo, a xenofobia e a intolerância religiosa me chocam. Chocam-me porque não sei como é que é possível detestar as pessoas apenas pela sua cor, nacionalidade ou credos, quando há milhentas razões para detestar as pessoas. A minha rua é uma zona de guerra nesse sentido. Há uma constante guerra de pessoas que me querem enervar, que querem que eu as deteste. Que lutam por isso. O dia na minha rua começa pela paragem num café qualquer. Seja ele qual for, há sempre um gajo que abana o saco do açúcar umas cinquenta vezes a mais que aquilo que é humanamente tolerável. O som dum pacote de açúcar a ser demasiadamente abanado torna-se aflitivo. Fica-se sempre a pensar “bem, o gajo só vai abanar mais esta vez, é impossível ir abanar uma outra vez”. E aquilo só pára quando já está tatuado no cérebro, quando já estamos a pensar se um lança-chamas é coisa para se encontrar numa loja de ferragens e, se sim, se nos emprestarão um só para ir ali ao café fazer uma coisa. Um destes indivíduos que abana muito o pacote de açúcar é normalmente acompanhado por mais dois virtuosos intérpretes dessa arte que é o meter nervos. Um que se insere na mesma família deste primeiro, porque opera ainda na ambiência da bica, e que insiste em mexer o café tantas, mas tantas vezes, que aquilo até faz remoinho. E aquele barulhinho constante da colher a bater na cerâmica da chávena é, para não ser ordinário, enervante com’ò caralho. Foda-se. Curiosamente, o urso que abana muito o pacote, mexe pouco o café, ao passo que o camelo que mexe muito o café, abana pouco o pacote. Curioso, no mínimo. O terceiro espécime, o que completa este maravilhoso trio das sonoridades, é aquele que está a fazer as palavras-cruzadas e carrega neuroticamente na caneta. Neuroticamente significa à volta de 200 cliques por minutos. Parece que a caneta está a ter uma dupla taquicardia. Seja qual for o café que eu escolha, estas três entidades, embora assumindo manifestações físicas diversas, estão sempre lá. A guerrear-se para ver quem enerva mais. Na rua, pode-se afirmar que, e recorrendo a um metaforismo excepcional, se as coisas que enervam forem encaradas como balas, está-se sob o maior fogo cruzado de que alguma vez há registo. Posso até destacar duas entidades que parece que fazem plantão na minha rua, a disparar feitos parvinhos. Por exemplo, o monhé que, todos os dias, me quer oferecer um panfleto do restaurante indiano que vende comida de basicamente todo o lado. É um monhé especialmente caricato porque veste sempre toilettes 100% ganga. Calça, casaco e camisa. Já o vi de chapéu de ganga e tudo, mas deve-o ter perdido, que já há uns tempos que não o usa. Todos os dias ele me tenta dar um panfleto e eu, todos os dias, abro os braços e faço uma expressão de “foda-se, Apu, eu moro aqui, porra! Temos que passar todos os dias por isto?”. Não vale de nada. É estar a abrir os braços e fazer expressões para o boneco. Depois, temos o pessoal das pranchetas. Para quem não é muito versado nesta coisa das coisas e afins, uma prancheta é um utensílio, quase sempre em cartão ou plástico rançoso, que permite colocar sobre si uma folha de papel e escrever sobre esta última. Muitas vezes tem até uma bodega em ferro que permite segurar a folha, para impedir que esta caia ou saia a esvoaçar. Definida a coisa, por certo que ninguém arrebitará cachimbo quando se disser que nunca, em qualquer ponto do planeta, alguém se sentiu melhor ou pensou que valeu a pena depois de ter sido abordado por um indivíduo com uma prancheta. Na minha rua há sempre pelo menos um destes. Driblá-los é lixado, mas eu sou o George Best desta cena. Seja como for, cansa. Também cansava o Best. E enerva. Oh, se enerva. Sobretudo quando os gajos nos tentam encurralar. Ou quando eles correm. Sim, porque se eu sou o Georgie Best do drible a pessoal das pranchetas, há deles que são o Hans-Peter Briegel. Correm e lutam. Saturam o alvo. Já houve bastas ocasiões em que, ultrapassado este cenário de guerra, constato que me havia esquecido de algo imprescindível em casa. Sorte a minha que nunca calças e coisas dessas. Mas, ainda assim, coisas que m’obrigam a voltar. E voltar significa ter que fintar as pranchetas e ter que manifestar o meu desagrado mudo ao monhé da ganga mais duas vezes. É um castigo demasiado cruel para um pobre homem cujo único pecado foi ter-se esquecido de algo em casa. Numa dessas ocasiões, enquanto metia a chave na ranhura, presenciei mítica interacção entre António Feio e um utente de esplanada. Após confirmar com um seu companheiro se seria mesmo o actor quem tinha acabado de entrar, o utente de esplanada, quando Tó Feio saia do café, dispara um “Eh pá, és mesmo feio”. Ao que António Feio, habituado a estas andanças do dar satisfações ao público que o idolatra, responde com um “Sou feio, mas tu és parvo”. A próxima tirada sai do lado do utente de esplanada. Diz ele que “Pois, mas és feio”. António Feio, durante toda este intercâmbio argumentativo, nunca abrandou sequer o passo, virando apenas a cabeça para responder ao utente. Depois do “Pois, mas és feio”, Tó envia um “E tu és parvo”. Neste momento, a interacção entra num período de loop. De um lado o “mas és feio”, do outro o “mas és parvo”. Isto até o argumento de António Feio, em progressivo fade-out, se ter desvanecido por completo. O utente, olhando em volta, sorriu, como que procurando felicitações alheias. Esperei que ele olhasse para mim e disse: “quem era aquele?”. Antes que ele tivesse tempo de responder, meti-me dentro do prédio. Não se pode dar trela a esta gentalha.

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