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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Isto o fodido ainda são os títulos

pedro, 21.06.07

Esta cena de ter um espaço cultural revolucionário e de categoria categórica, conquanto cheio de letras, tem que se lhe diga. Mais cedo ou mais tarde – ou vice-versa caso prefira e se preferir, permita-me a lisura, acho que é um coca-bichinhos empertigado ou, como dizer, da merda –, um gajo esquece-se do que já falou. Ainda há dias m’esqueci de não sei quê que já não me lembro. E tem-me acontecido, recente e frequentemente, entrar em determinada divisão da casa e não saber o que raio fui lá fazer. Depois, para me convencer a mim mesmo que não estou a ficar maluco, ao invés de m’ir embora resignado perante os primeiros galopes da demência, finjo que sei perfeitamente o que fui lá fazer e faço uma coisa qualquer. Na casa de banho é fácil, tomo banho. Há divisões bem mais lixadas. Na sala, finjo sempre que vim buscar uma revista ou um jornal. Só que às vezes só há catálogos e tenho que fingir que vim mesmo à procura do da La redoute ou do da Worten. Esta ocorrência é tramada porque depois tenho que levar com olhares do género “lá vai este ver as fotos das gajas em lingerie” ou “deves andar a pensar que vais enterrar novecentos contos num plasma, deves”. Quando é na cozinha, tenho que fingir que fui buscar um iogurte ou beber água. Só que às vezes não tenho sede nenhuma, ou só há iogurtes naturais, e lixo-me. Meto açúcar, claro, mas comer um iogurte natural não deixa de ser um renegar dos meus princípios mais básicos. Acabo por ser sempre confrontado com um “mas tu metes açúcar nos iogurtes?”. Meto, é para compensar o que não meto no café. “Mas tu não bebes café”. Exacto. A vida é uma montanha-russa de coisas sem sentido nenhum e eu dou algumas cem voltas por dia nela. Por seu turno, caso dê por mim na casa de banho sem saber a que propósito lá meti os pés, tomo banho, como referi ali mais em cima. Tendencialmente, uma coisa que ameaça justificar o adjectivo “recorrente”, em termos de banhos, é o facto de m’esquecer de molhar o braço onde tenho a mão que agarrou o chuveiro na primeira fase de molhadura. Só reparo que não molhei esse braço quando meto lá gel de banho e verifico que está seco. A sensação está longe de ser a mais agradável. Gel de banho numa zona enxuta do corpo é das medidas mais contraproducentes que a contraprodução alguma vez foi capaz de contraproduzir. É que até há coisas que eu apreciaria esquecer. O refrão da Baby jane, por exemplo. Ainda há dias percebi que o sei de cor. O sacana até me sai fluido, nem tenho que pensar, nem careço de qualquer período prévio de concentração ou o que for. É curioso porque, por exemplo, na tabuada do três para cima, tenho que pensar sempre, mas não para este refrão. Este e muitos outros, infelizmente. Destapei esta maravilhosa capacidade no seguimento duma teimadela dum indivíduo que, broncamente, apregoava que a Baby Jane era uma música do Michael Jackson. Limitei-me a constatar o óbvio, como quase sempre acontece: Baby Jane é do Rod Stewart, a Billie Jean é que é do Jackson, seu conaça. À criatura não lhe chegou. Lá tive que cantarolar when I give my heart again/I know it’s gonna last forever/no one tell me where or when/I know it’s gonna last forever. Não é das coisas que mais me via a cantar nuns urinóis, mas paciência. Até não desgostei da acústica do sítio, devo reconhecer. Relativamente a esquecimentos, o maior temor ganha forma nessa arte que é o zapping. Reúne-se junto a mim algum receio em esquecer como se faz. Aliás, apelidar de apenas zapping aquilo que faço com um comando de televisão seria equivalente a dizer que o Michelangelo Buonarroti foi somente um empreiteiro que até se ajeitava com acabamentos para tectos. Um telecomando, nas minhas mãos, parece um violoncelo nas mãos do Yo-Yo Ma. Ou um violino nas mãos da Vanessa Mae. Não sei quem é que toca melhor. Talvez o Paganini tocasse melhor que a Mae. Mas a Vanessa tem uma característica que o violino aprecia. Está viva. Também podia ter uma característica que eu aprecio deveras, mamas, mas nesse campo em particular acho que até o Paganini lhe bate o pé. Sim, que a Vanessa é oriental e o Paganini devia ser afanado. A wikipédia diz que tinha colestrol. Confere. Portanto, é ver quem tocava melhor e mandar-se a atordoada que essa pessoa toca violino como eu toco telecomando. E se oiço que não dá para comparar porque são áreas, gerações e até géneros distintos, mato já aqui um pequeno mamífero. Não é um insecto, é um mamífero. Toda a gente tem pena de mamíferos, por isso cuidadinho. Há algum mamífero nojento, que ninguém s’importe que eu trucide sem piedade com um martelo daqueles para comer sapateira mas em alumínio, que não havia de madeira na rameira daquela loja? Duvido muito. Só se for uma ratazana, mas eu também não me chego perto disso. Nem cães grandes. Tem que ser uma coisa fofinha. Um mamífero fofinho. É um desses que mato se fizerem não sei quê que entretanto m’esqueci. O Yo-Yo Ma é que até deve ser péssimo no ioió. Muitas vezes, o nome não quer dizer nada. Conheço um gajo chamado Futre que, apesar do nome, não joga nada à bola. Nem matrecos, quanto mais. O mais prazenteiro é que, quando estamos a jogar à bola e dizemos “ó Futre, entra aí, joga connosco”, quem não o conhece fica logo todo acagaçado, a pensar que o gajo finta tudo. Até eles perceberem, e porque o Futre passa a quase monopolizar a marcação cerrada, eu enfio alguns quatro ou cinco golos. E, como já tornei público anteriormente, conheço dois Gil Vicente e nenhum deles escreve teatro por aí além; julgo inclusive que nem sabem da existência do seu homónimo viciado em autos, conhecendo apenas o patético clube onde jogou o Mangonga e o Cacioli. A minha categoria com o comando, embora indefinível, acaba por deixar que se lh’apontem algumas qualidades mais manifestas. Num sentido lato, a face mais visível da arte com um telecomando é sempre o zapping, claro, sendo que, nessa área artística em concreto, o meu é visceralmente admirável a todos os níveis. É maquinal, de tão perfeito e técnico. Palavra de honra. Por isso é que me custa quando o meu pai diz coisas como “porque é que tens que estar sempre a mudar de canal”. A resposta é simples. Não percebo é por que carga de água se há-de ficar sempre no mesmo. Podem estar a dar coisas mais giras noutros canais. Podemos estar a perder o maior momento da história da televisão só porque preferirmos não estar sempre a mudar de canal. Não sou capaz de arriscar. Eu, quando foi o onze de Setembro, vi o segundo avião a aproximar-se, e ainda fiz um zapping antes do gajo bater nos vidros e deixar ali um bonito serviço. Que sentido fazia ficar a ver o trajecto do avião? Vi o avião, fiz o zapping, e voltei para o embate. Assim é que se faz. Mas há mais coisas. A gestão dos paus do som, por exemplo. Às vezes, chego a uma sala onde estão a ver televisão e, após uns segundos, percebo que algo está mal a nível das harmonias. Pergunto aos presentes se notam isso também, que algo não está a bater certo. Dizem quase sempre que estão bem, que não sabem a que me refiro e para parar de gritar e abanar o molho de chaves que eles estão a ver o filme e eu pareço uma criança. Pois, mas depois de eu pegar no comando e ajustar os paus do som, e às vezes basta um ajuste mínimo, de apenas um ou outro pau, já dizem que sim senhoras, agora é que está mesmo cinco estrelas, impecável. Haverá muito mais, que há, mas julgo que o essencial está exposto. Por tudo isto, faz-me imensa confusão que me digam que é má educação ir a casa das pessoas e açambarcar o comando. Blasfémia absoluta. Se as pessoas não sabem usá-lo convenientemente, há que intervir. Pode ser feio, mas salvam-se vidas. Ou, no caso, a minha paciência, que é bem importante. Toda a gente também pensava que o Hitler estava a ser mal-educado com as pessoas, mas a verdade é que, lá com os esquemas dele, mais ninguém voltou a usar um bigode daqueles. Valeu ou não valeu a pena, para exterminar por completo um tipo bastante específico de bigode? Hã? Claro que sim, que valeu. Quer dizer, não apagou por completo o rasto àquele tipo de bigode, que o Professor Neca ainda usa uma variante que foi beber bastante inspiração ao do Hitler. Mas o Professor Neca é um caso único em qualquer panorama e sob qualquer prisma. Não percebo aquilo. O homem tira um curso, carrega o pomposo título de professor, mas depois não s’importa, e até faz questão, que lhe chamem Neca. O Nelo Vingada partilha de alguma similitude, mas ao menos o Nelo sempre consegue que usem também o apelido. Não é só Nelo. É Nelo Vingada. O Neca é, só Neca. Mas professor. Foneticamente, isto é um crime de lesa-tudo. Se tem estudos, deixa de ser Neca. Ninguém é Professor Neca, tal como ninguém é Doutor Cajó. Sim, há o Professor Bambo, mas cursos em África não sei se terão equivalência por cá. Logo, a questão é outra. Aqui há uns anos, aliás, ontem, ouvi outro absurdo em termos de fonética. Um menino foi atacado por um chimpanzé no Bombarral. Abriu o noticiário do almoço, o da SIC. Fascinante, embora não exista cérebro civilizado que processe a informação sem um pujante recalcitrar, ainda que mental. Se eu, quando era gaiato, tivesse chegado a casa todo arranhado a dizer que tinha apanhado uma surra dum chimpanzé, ainda apanhava era uma chapada, para não ser mentiroso. Isto agora são outros tempos. Só facilidades, a papinha toda feita. Semelhantemente um bom exemplo de holocausto fonético é aquilo do Serial Killer de Santa Comba Dão. Soa mal e deviam ver essas coisas. Parecendo que não, dá a sensação que é a brincar. Não custava nada terem essa atenção, que assim não aparenta ser assunto sério. Por conseguinte, estando na segurança do meu lar ou não, sinto-me na obrigação moral de dominar o telecomando. Tenho truques para sacar o dito, que agora pelos vistos é socialmente punível o acto de simplesmente sacar o comando do colo d’alguém. Nunca o advérbio de modo socialmente é proferido por alguém que não m’apeteça esmurrar logo a seguir. É uma coisa que ele tem, o socialmente. Um dos ardis eleitos para sacar telecomandos é o clássico “oh deixa só ver uma coisa”. Que, espantosamente, resulta com uma eficácia parva no mundo dos adultos. Sim, ao contrário das crianças, não há adulto que não caia num “oh deixa só ver uma coisa”. E assim se assenhora um indivíduo do comando de televisão. Por sua vez, constate-se que os adultos não alinham no “abre a boca e fecha os olhos”. As crianças sim. É mais que notório que o “oh deixa só ver uma coisa” dá bem mais jeito quando se é criança, embora, no que à eficácia diz respeito, deixe muito a desejar nesse hemisfério. Enquanto que um “abre a boca e fecha os olhos”, com índice de aproveitamento decente, revolucionaria o mundo dos crescidos. Quando eu era criança, o “oh deixa só ver uma coisa” infalível é que me tinha dado jeito. Mas isso não existia. Existia é um “abre a boca e fecha os olhos” que raramente, mesmo muito raramente, saía frustrado. Agora dá-me jeito um “abre a boca e fecha os olhos”, e muito menos o “oh deixa só ver uma coisa”. Assim com’assim, eu recorro ao “oh deixa só ver uma coisa” no mundo adulto, até porque, e ainda que existam outras manigâncias do género que encaixariam que nem uma luva nas necessidades humanas, acho uma estupidez ignorar o potencial de algo que resulta. Sacar o comando até é fácil. Ouvir coisas como “ei, eu estava a ver isso, que mal-educado” é que custa. Dói-me o coração.


Mal-educadas são as pessoas que me dizem coisas como “hoje parece mesmo quinta-feira, não parece?” a uma terça ou quarta. Que pénis quer esta gente que eu lhe diga? Isto é gente que quer ser ofendida de alto a baixo. É gente que provoca. É gente que quer é confusão. É gente mal-educada. Isto, não eu. E, caso não tenham reparado, fiz uns filha da puta duns parágrafos. 

Que não se aguenta

pedro, 17.06.07


Julgo não ficar muito longe da exactidão quando constato que, para o comum mortal, alguma incapacidade para as noções métricas se apresenta como natural. Estranho é que também assim se verifique comigo. Acontece, e só me dota de ainda mais charme. Isto, de não ter grandes noções de métrica, eleva-se a complicação da grossa a partir do momento em que se tenta cozinhar seguindo as instruções da alcunhada receita. As poucas quase certezas que tenho na área das medições dizem respeito a pessoas e devidas alturas. Fora disso, é território desconhecido ou, sendo menos pessimista, território onde atiro palpites assim tudo à balda. Palpites que, saliente-se, e bem salientadinho, saem da minha boca com uma convicção tal que passam por factos em tudo quando é lado, desde o café onde ofereço cabeçadas à mínima divergência opinativa até aos cocktails onde finjo que o que m’apetece não é comer com as mãos e atirar caroços de azeitona para os copos das outras pessoas. Que isto afinal é tudo uma questão de postura. E não são factos da Internet. São factos dos irrepreensíveis, daqueles dos laboratórios e em que se usaram tubos de ensaios e que foram resultado de “estudos exaustivos”. Nem no futebol, área que, como cerca de mais de mil outras, domino como ninguém, consigo grande nível de exactidão. É sempre “c’uma porra, então a barreira está a dois metros” e “qu’i caralho, então o gajo está alguns três metros fora de jogo” quando são, respectivamente, lances defensivos e ofensivos da outra equipa. E, por exclusão de partes, “eh pá, assim não dá, então a nossa barreira está a mais de cento e cinquenta metros da bola” e “foda-se, está alguns vinte metros em jogo, meu boi/urso! Não vês que o Liedson é rápido, minha besta/anta?”, quando se referem ao meu clube, que permanecerá, mais uma vez, incógnito. Certa ocasião, estava um consócio a dizer-me que tinha visto um golo incrível dum gajo qualquer chamado João Seminário. “Foi a mais de trinta e cinco metros da baliza, e entrou mesmo lá na gaveta”. E eu, porque não tinha mesmo certezas, soltei, como quem não quer a coisa, um “ah, então foi um remate de longe, e isso”. Parece que sim, que foi. Não sei porque é que o velho não disse isso então. Eu, porque queria deixar de ouvir falar em golos do tempo em que as barras eram barrotes das obras, disse-lhe que me lembrava de ter visto o Lorenzo Lamas aviar um rotativo em três maus, assim tipo dominó. Ou bowling. Os velhos nunca sabem quem é o Lorenzo Lamas. Nem bowling. E se um velho não sabe de quem ou do que se fala, cala-se, com vergonha. Sobretudo se numa ambiência futebolística. Até hoje, não houve velho que tivesse tido a última palavra numa discussão contra mim. Embora, admito, o facto de lhes dar o sono ainda bem antes das seis da tarde, acabe por se revelar um aliado em condições. Para mim, os remates no esférico só têm três leituras, em termos de distâncias. O remate de longe, que é qualquer charutada de fora d’área; o remate de perto, que é qualquer merda perto do guarda-redes e, relembre-se, é coisa para, nas peladinhas de gente de bem, dar muitas vezes azo a que se levantem questão essenciais como “ah, vale sarda ao perto, é? Então ‘tá bem!”; e o remate de meio-campo, que, como o próprio nome, esse chibo, anuncia logo, é um remate de meio-campo ou, curiosamente, para trás de meio-campo. Se verbalizam a coisa em termos de metros, perdem-me logo e eu digo que não tenho tempo para sensaborias porque estou a pensar na influência do/a – inserir vocábulo inventado na altura – na queda do império bizantino. Quer dizer, trinta e cinco metros parece-me longe, concedo, mas também não me parece muito longe e sei lá se foi ali ao pé da área ou de meio-campo, por exemplo. Já agora, ressalve-se que marquei uma vez um golo, no Pro Evolution II ou III, que no VI os cabrões fizeram questão que fosse impossível, de livre directo a quarenta e um metros da baliza. Mas sei que era quarenta e um metros porque aquilo diz, no cantinho, antes de chutarmos. E, pasme-se, com um gajo da Tunísia. Não me lembro do nome. Ou de Marrocos. Ou da Turquia. É o capitão e tem uma espécie de afro com textura típica da África branca. É trinco e péssimo, óbvia e esperadamente. Deve ser o tunisino mesmo, que os trincos turcos no Pro Evolution Soccer, tanto II como III, eram dois anões. O Suat Kaya e o Okan Buruk. Saber isto de cor assusta-me um bocadinho. Quanto ao golo, fiquei com os olhos vidrados, caramba. Mas deixei-me estar, impávido, que sereno nem por isso e chateia-me essa merda dessas duas expressões terem que vir o caralho sempre juntas ou a merda, vão-se foder, mas é mais isso que não há decreto nenhum nesse sentido. Nem festejei. Para os outros gajos pensarem que eu fazia aquilo com frequência tal que já nem manifestava qualquer emoção. Assim uma espécie de Amon Goeth dos livres directos. Profissional e frio. Sem perturbações básicas. Embora mais a enfiar patardos no ângulo que balázios em judeus, que isso diz que agora é crime. Vem este paleio sem grande jeiteira a propósito do facto de eu ter tentado cozinhar algo mais que o habitual; sendo isso, o tal de habitual, a engenhosa abertura duma lata de grão e outra de atum, registando-se o posterior emparelhamento de ambas as coisas, numa miscelânea singularmente orquestrada. Tem dias que até pico meia cebola e meto orégãos a fingir que é salsa. A salsa é psicológica. Não é o frio, como, algures na nossa vida, alguém muito irritante faz questão de dizer. É a salsa. Quem tem este problema com medidas está lixado quando se trata de cozinhar. Primeiro, q.b. é uma definição inócua, que mais podia querer dizer “olhe, desenmerde-se e meta o que quiser”. Não percebo como é que as mesmas pessoas que usam o q.b., aparecem depois com preciosismos incríveis. Como gramas. Trinta e cinco gramas de margarina é o quê? Deviam meter coisas como “uma dedada de margarina”, e bastaria enchermos a ponta dum dedo para saber quanto queriam. Uma mão-cheia também me parece bem. Aliás, e já que é para meter a mão no pacote da margarina, nem é mão-cheia, é macheia mesmo. Ou, então, as referências das receitas deviam-se limitar a metades. Qualquer coisa como “metade do pacote de margarina”. Ou o pacote todo, vá. Duas metades. Também daria. Ou até quartas partes. Um quarto do pacote de margarina também é facilmente mensurável. Agora, trinta e cinco gramas? Tanto quanto sei, trinta e cinco gramas até pode ser o pacote de margarina inteiro. Já agora, vou lá ver isso. Calma. Afinal, nem tenho margarina. Mas vi o de manteiga e a caixa diz que o pacote todo tem trezentos gramas. Amanhã lá me lembro disto. Esta última frase é para ler naquele tom irónico que oralmente resulta tão bem que até mete impressão. Como queria que aquilo ficasse decente, lá acabei por tentar descobrir quanto seriam trinta e cinco gramas de margarina. E, aos bocadinhos, lá fui pesando aquilo na balança onde normalmente me certifico que ainda sou o Adónis que sempre fui e serei. Decorre este comportamento do facto de se saber quanto se pesa começar a ser altamente valorizado em conversas. Vão por mim. Já ia em vinte e oito gramas de margarina quando alguém me pergunta se aquela balança não era onde eu metia os pés para me pesar. Percebendo que vinha lá mais uma rasteira para me chamarem nomes na esteira de um “que badalhoco, Pedro”, disse que sim, mas apressei logo que usava sempre meias ou chinelos e nunca me punha descalço em cima daquilo. Não caio em armadilhas básicas. Confesso que também não percebo que raio quer dizer um “enfim” acompanhado dum abanar de cabeça nesse contexto específico. É que foi essa a reacção. Bem, pelo menos não me chamaram nomes. Claramente, ganhei o duelo. E lá consegui os trinta e cinco gramas de margarina. Mas é um esforço infrutífero, bem vistas as coisas. Perde-se quase duas vintenas e meia de minutos a medir trinta e cinco gramas de margarina para, na linha seguinte da receita, virem logo exigir uma desumanidade: dois decilitros de leite. Ninguém com perfeitas noções sobre o que deve conhecer e dominar neste mundo carracento sabe quanto raio são dois decilitros de qualquer coisa. Muito menos de leite, substância que, não me perguntem porquê, não que não saiba, que sei, não quero é dizer, é particularmente imedível. É comensurável em copos e pacotes, nada mais. Traz-me um copo de leite e traz-me um pacote de leite. É só isto. Ninguém fala em decilitros. Decilitros serve para se fazerem umas contas na primária, se não me falha a memória e já se sabe que isso, patentemente, nunca sucede. Passei à frente, só naquela de deixar isto para o fim, crente que, perto do desfecho, talvez já tivesse uma ideia da quantidade aproximada que seria isso do decilitro. No fundo, sou um lírico. Mas o lirismo dura pouco. Nem dois segundos, em dias bons. A seguir queriam uma xícara de farinha. Nem era chávena, era xícara. Enfim. É que esta preferência pela xícara, em vez da chávena, leva-me logo a entrar num estado pasmático de alguns dez minutos, a pensar em palavras começadas por x. Na verdade demorou até entrar alguém e eu ter aproveitado para perguntar “olha lá, não havia uma novela chamada xícara da silva?” e dizerem-me que “não, era Chica”, e eu perguntar de novo “só Chica?” e a pessoa dizer “Não, Chica da Silva”, e eu finalmente chegar a um “Ah, então era isso”. Parece que é uma que tinha uma mulata altamente copulável.  Falar em xícara é falar em chá, e falar em chá traz a lume outras questões. Isto da expressão do trazer a lume, estando eu a falar de chá, até foi por acaso. Quando m’apercebo que nem tenho que m’esforçar para ser como sou, percebo que se calhar me devia tratar melhor. Ter assim um pequeno altar em minha homenagem ou algo símile. Quiçá uma festa, daquelas em que há pevides, tremoços, rifas e bolo da festa. Bolo da festa é uma coisa estranha. E faz-me lembrar que andei anos e anos a dizer que não gostava de pão-de-ló porque estava convencido que era aquele bolo horrível com um ovo cozido no meio e que, ao que consta, até se chama folar. Afinal gosto, e bastante, de pão-de-ló. Só de pensar na quantidade de fatias que rejeitei por causa daquela porcaria com um ovo cozido no meio, até me dá vontade de legislar os direitos de antena e obrigá-los a falarem é destas coisas. Um partido que, há uns anos, me tivesse dito que um pão-de-ló não era um folar, teria o meu voto para sempre. Já em relação ao chá, conforme a preferência da presença feminina que reúna na sua pessoa as cerca de meia dúzia de características que considero substanciais, até sou sujeito para beber uma coisa dessas e fingir que sou todo zen. Incensos é que não. Que isso é ficar um passo mais próximo de me tornar uma daqueles pessoas que depois diz, em sítios diversos e sem critério aparente, “tenho que ir comprar incenso para queimar, que acho que já se m’acabou”. Não que não simpatize com queimadas, que simpatizo, mas acho que só valem a pena com pneus e coisas assim mais nessa onda do fumo mesmo preto e que faça chorar ou desmaiar. Portanto, beber chá, até bebo, mas em canecas. Não tenho chávenas, muito menos xícaras. Não percebo a utilidade duma louça que nos obriga a enchê-la dezoito vezes, ou se calhar até mais, umas trinta. Seria como jantar num pires. Não faz sentido. O preferível, nestas coisas, é sempre ir comer uma bifana àquelas roulottes da especialidade. Aproveite-se a ocasião, nada metida a martelo, para destacar a minha arte em todavia uma outra área. Sou o único gajo, pelo menos da minha e de outras cinco gerações – duas delas vindouras, o que é absolutamente colossal –, a conseguir comer uma bifana de roulotte, daquelas com tudo, a andar. Em locomoção, sem me cair um bago de milho que seja aos pés. É um espectáculo de inusitada beleza estética e psicomotora. Não são palavras minhas. Disseram-me, e bem mais que uma vez. Aproximadamente o dobro.

Não sei se se nota, mas talvez

pedro, 06.06.07
















No meu caso, e ao longo desse Ney Matogrosso que é o quotidiano, tem-se vindo a desenrolar, e até a consolidar de forma que nenhuma adjectivação define ainda como desejo, uma relação amor/ódio com os electrodomésticos. Embora sem a parte do amor. Como em quase tudo na vida, de resto. Ou tudo, que a sinceridade ainda é uma qualidade, que, por sua vez, e apenas e só em relação a mim, será sempre sinónimo de característica. Nada tenho, tenha-se isto bem presente, contra o progresso, pelo menos enquanto conceito e substantivo. Como nome próprio, a conversa já piará mais fininho. Acho que é feio. Mas diz que até é um sucesso em três PALOP. Cenas lá deles, suponho. Contra o progresso, nada ou muito pouco. Até sou comunista, mas isso é só porque não sou rico. Quando for, abastado, é mais que óbvio e garantido que passarei a ser um daqueles gajos que acha que quem quer subsídios não passa dum calaceiro, que há para aí muito emprego e essa malta não quer é trabalhar, os embusteiros duma figa. Um dos problemas mais recorrentes, envolvendo a minha faceta de caseira e os aparelhos eléctricos de aproveitamento doméstico, tem o microondas como personagem principal. Principal se, num exercício absurdo, se conseguir considerar que eu não sou o protagonista, a luz e o sol de todas as dinâmicas em que meto o bedelho. Na minha vida actual, e por razões diversas que podia resumir numa única mas não quero, sou forçado a recorrer a três microondas. E é chato. É chato porque as marcas de microondas, e os três são de raças distintas, não parecem ter chegado a um consenso relativamente à correspondência, absolutamente vital em aparelhos desta índole, entre tempo de aquecimento e potência do aquecimento. Se, num dos microondas, um par de minutos é o tempo ideal para requentar algo que pernoitou no frigorífico, noutro já é período para que se registem aquelas pequenas explosões, as que deixam nódoas de molho nos cantos do aparelho. E, se for preciso, no outro, já só chega para aquele aquecimento de deixar umas partes a ferver e outras congeladas. Deviam ter criado um código de conduta para isto, era o que era. Mas as marcas de microondas devem achar que uma pessoa não tem mais nada para fazer que andar a decorar qual dos três microondas é que funciona na base dos dois minutos para deixar a comida mesmo aquecidinha e em condições. A verdade é que esta má relação não é d’agora e os electrodomésticos já me arreliam vai para muitas calendas. Lembro-me de, em pequeno, ter apanhado nas fuças duas vez. Por causa deles. Uma vez foi porque, aparentemente, não devia ter convencido a minha prima a tentar fazer uma permanente com a batedeira. Houve pranto durante dias, a minha prima teve que cortar o cabelo e toda a gente lá na escola pensou que era porque tinha piolhos. Ficou sem amigos e agora está numa instituição, todo o dia de pijama a afastar mosquitos que não existem. A minha tia ainda hoje me responsabiliza por isso, mas não fui eu que lhe peguei piolhos. Eu lembro-me que ela meteu uma vez um chapéu da Dan Cake na cabeça que já estava num cabide lá da escola há uns dois anos. Se calhar foi daí. Mas é mais fácil culpar-me a mim, que não passava dum miúdo. Uma criança. Foi a primeira vez que a minha tia disse à minha mãe para me meter num psicólogo. Mas ela na altura ainda dizia “psicolo”. Fui eu que a corrigi e tudo. A partir daí começou a dizer bem, mas na altura ainda me olhou de lado, a parva. A outra, foi quando houve um acidente com o canário. E, por acidente, entenda-se “alguma vez secar o canário no forno vai fazer mal?”. Parece que faz. Sobretudo quando se vai ver um bocadinho de televisão enquanto o pássaro seca e, quando se dá por ela, passaram uns minutos que, todos somados, ainda dão umas horas. O complô da batedeira, do forno e do televisor resultara. Apanhei dessas duas vezes. Ou ralharam-me e eu ameacei logo os meus pais que ia dizer à polícia que me tinham batido com um martelo e que se fosse preciso até arranjava marcas feitas com um carimbo e eles iam presos que se lixavam. E o frigorífico é outro idiota que para aí anda. Por várias razões, sendo uma delas muito simples. Estimo francamente a manteiga com uma textura consistente e fácil de barrar. Mas isso não existe. Se está fria e consistente, é uma cópula barrar aquilo no pão. Se é fácil de barrar no pão, está mole e, em termos de paladar, a anos-luz da outra hipótese. Será que custava muito pensarem num frigorífico que deixasse a manteiga fria e fácil de barrar na mesma? Pelos vistos, sim. Parece que é melhor andar a investir em mariquices como ir à lua e ver se há torneiras ou baratas em Marte. E não se deixem empandeirar por avisos como “Agora fácil de barrar!!!”, que isso é só cantiga e não funciona com manteiga gélida. Também gostava de saber que mal fiz eu a Deus para a luz do frigorífico se fundir sempre comigo. Se há perguntas que enervam, uma delas é com certeza a “mas como é que fundiste a lampadazinha do frigorífico?”. Abri a porta. Foi isso que eu fiz. Todas as lâmpadas se fundem comigo. Se fundir lâmpadas fosse um super poder, eu andava agora aí de capa, a dar caldos em maus megalómanos que usam pala no olho. Ainda aqui há coisa de entretanto, a lâmpada do quarto fundiu-se quando tentei ligar a luz. O costume. Por norma, vou aos outros quartos e troco a lâmpada. Nada feito, que, depois de anos a usar este truque, parece que já tudo se foi fundindo. Até comprava uma lâmpada, mas devo trocar de pousio daqui a uns meses e não vale a pena estar a investir neste. Não sou parvo. Não tendo luz no quarto, tenho é que ter sempre o televisor ligado, para ser brindado com alguma luminosidade. Acabei por ver um anúncio, sei lá de quê, que, tal como os electrodomésticos, também remetia para cozinhas e divisões dessas. Apresentava como um facto científico o seguinte: a bancada da sua cozinha tem cinquenta vezes mais bactérias que o tampo da sua sanita. Singelo, não haja dúvidas. Eu fico muito agradecido a este anúncio. É sempre bom poder apresentar factos que calem aquelas pessoas que nos chamam nomes feios só porque nos apanham a picar cebola no tampo da sanita. Pelos vistos, porcas são elas. Cinquenta vezes mais. Toma, embrulha. Porcas.