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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

carmesim & trevo

pedro, 29.10.07


Aqui há dias, num momento de extrema luminescência criativa, em contraponto com a apenas brutal luminescência que por norma me acompanha de mão dada que nem um casal de namorados domingueiro e tendencialmente repugnante, concluí que o progresso é, em primeira instância, o resultado da acção de indivíduos preguiçosos que procuram formas menos cansativas de fazer as coisas. Esta minha conclusão – ou de outro gajo qualquer, chamemos-lhe Heinlein, Robert A., e, para efeitos de consistência narrativa, imaginemos que ele existiu mesmo e foi um [inserir adjectivo à escolha, mas nada de muito espampanante] autor de ficção científica, área que, por arrasto lógico, moral e tudo o mais, o torna num gajo intrinsecamente maçador – é a todos os títulos notável e, mais isso que outra coisa inclusive esta coisa da notabilidade, factual. Reconheço essencialmente que eu próprio seria um indivíduo imbatível neste trabalho de identificação de áreas onde as tarefas podiam e deviam ser alvo desse progresso mandrião. Áreas onde urge associar-se um muito maior facilitismo ao processo. É este tipo de incumbência profissional que devia constar da CNP, sigla para classificação nacional de profissões, o, refira-se, livro mais espesso (frondoso, se se preferir a figura de estilo básica que estabelece a associação entre a folhagem arbórea e o folhame do alfarrábio) que alombei na mochila ou levei na mão, encostado à anca direita. Isto porque a minha avó tinha uma versão do “Guerra e Paz” em centenas de volumes, julgo que mais de cem, como convém, assim ao estilo de livro de culinária, muito fininho e ideal para se guardar posteriormente num dossier creme. Para além disso, importará referir que nunca li o “Guerra e Paz”, mas é o livro mais grosso que conheço. Há ainda que evocar o facto de Tolstoi não ter recorrido ao espaçamento duplo e demais subterfúgios, como eu sempre fiz lá nas coisas para aquela faculdade. Aproxima-se agora da minha prodigiosa memória, aptidão que, têm-me dito, tendo cada vez mais a mesclar com a imaginação, um episódio curioso, envolvendo precisamente labuta escolar e um determinado processador de texto, aquele do clipe. Tratava eu dum encargo escolar, a entregar obviamente no dia seguinte, quando constato que possuo apenas cerca de trinta linhas sobre nada de especial, ainda por cima, aquele tipo de nada de especial onde um olho bem treinado consegue ver que não se leu peva sobre o que quer que fosse sobre o que se devia estar a redigir. Devido a uma procura miserabilista pela inspiração errante, e porque nunca consegui jogar aquilo do porta-minas ou saca-minas sem ser ao calha (o que, garantia pessoal, é frustrante), decidi ir saber com que tamanho de letra as minhas trinta linhas preencheriam a centena de páginas que tornava este trabalho sequer avaliável pelas doutas cabeças que me avaliaram nessa fase. Comecei como devia ser, sem me armar muito em Ícaro, com um tamanho trinta. Fui aos cinquenta. Cem. Duzentos. Quinhentos. Mil. C’um raio, tamanho mil dava-me tantas páginas. Até me vieram as lágrimas aos olhos, embora isso possa ter sido porque bocejei um daqueles bocejos que fazem vir as lágrimas aos olhos. Uma vez tive um desses bocejos no final do Armageddon, aquele filme em que deixam o Bruce Willis na lua. Fartaram-se de gozar comigo, a pensar que eu me tinha emocionado com a película e de nada valeram os meus clamores que garantiam que aquilo não tinha sido nada mais que uma reacção física e perfeitamente natural a um daqueles bocejos que fazem vir as lágrimas aos olhos. Cheguei a dizer, ainda ligeiramente de lágrimas nos olhos produto daqueles bocejos que fazem vir as lágrimas aos olhos, “estou-me a cagar para o Bruce Willis!”. Dizem que a minha voz resvalou um bocadinho para a estridência, eventualidade que costuma escoltar o desespero, mas essas cenas eu já contesto. Bem, mas já ia no tamanho mil e só me ocorria que, afinal, aquilo era fácil, Tolstoi. Mil e duzentos. Aquilo não tinha fim. Mil e quinhentos. Mil seiscentos e trinta e oito. Pronto, o máximo que dá. Eu só via o número de páginas a aumentar parvamente, cá em baixo, já ia em mais de oitocentas. Eis que, quando nada o fazia esperar, arre, foda-se para isto tudo. Mil seiscentos e trinta e oito foi o sol, eu fui Ícaro e as minhas trinta páginas podem ficar com o papel das asas de cera. O computador encravou, perdi as páginas que tinha e lá devo ter aprendido uma lição de extremo valor, o qual não estou bem a ver qual seja. Presumo que, dessa vez, tenha recorrido ao truque do “Eia, professor, tinha o trabalho nesta disquete, mas apagou-se tudo por causa da electricidade estática no metro”. Eu sei que a expressão não é electricidade estática, mas na altura eu sabia a expressão exacta, o que tornava a desculpa inatacável sob todos os pontos de vista. Que bodega de mito urbano mais revelador em termos de parvoíce individual. Cada vez que via um colega de escola com uma disquete envolta em papel de alumínio, só me dava vontade de lhes podar as extremidades. Portanto, dizia eu, lá mais acima, que áreas urgentemente carentes de progresso no tal sentido que, se alguma coisa, anuncia preguiça nos seus promotores, eu consigo enunciar assim uma ou outra aos pontapés, com inusitada facilidade. Por exemplo, o negócio da transacção da lenha. Tenham lá santa pachorra, mas estamos no século vinte e um, fazem-se melancias quadradas, transformam-se meninos em meninas e vice-versa, vai-se à lua meter bandeiras e cantar os parabéns, acho que já vai sendo altura de alterar, um tudo-nada que seja, a dinâmica que passo a descrever. Alguém da minha família conhece um gajo qualquer que vende lenha, da, passo a citar de cabeça, “boa, de carvalho e azinho, nada de bocados de eucalipto ou móveis velhos para encher”. Dão-me um número. Eu ligo para lá e pergunto sempre se é um senhor Manel ou ‘Quim. É sempre, tirando uma vez que era uma Conceição a dizer que o ‘Quim estava de cama, com papeira e que aquilo era muito perigoso quando já se é crescido. Peço não sei quantos quilos de lenha, os quais nunca poderei confirmar se estão conforme combinado, mas enfim. E é isto. Num sábado de manhã, aparecem-me dois aldeões, um mais velho (presume-se que o Manel ou ‘Quim) e outro mai’ novo (sobrinho ou enteado do Manel ou ‘Quim). E, atenção, de manhã, para esta gente, é quase de noite. É às oito da manhã. Não é, como eu inocentemente pensava, ao meio-dia ou, quanto muito, às onze e meia. Chegam, descarregam uma pilha de troncos à frente da garagem e vão-se embora, vindimar, tratar da criação e essas coisas. E é isto. Comprar lenha é isto. É, num sábado de manhã, ter o portão da garagem visualmente coberto por troncos. Eu não sei que sistema vigorava na Idade Média, mas não deve andar muito longe disto. O que sei é que, quando compro lenha, encho as minhas mãos de donzela – donzela não na sua ambiência de usar vestidos de gala ou ter predilecção pela roupa interior de seda, mas num sentido de “nunca sachei batatas de sol a sol” – de farpas. Chateiam-me as farpas. Acho o nome pouco masculino para a dor e aborrecimento que provocam. O “Eh pá, tenho aqui uma farpa no dedo” soa sempre a mariquice no receptor, mas é algo que provoca incómodo sentido no emissor. O triste da situação é que o emissor, uma vez receptor, se parece esquecer do incómodo que representa uma farpa no dedo. É complicado. Também gostava que desenvolvessem um método de assoar que se coadune decentemente com a ideia de progresso. Não tanto a ideia do progresso enquanto resultado da mera vontade em tornar as coisas mais fáceis, mas mais aquela ideia do progresso que afasta a franca sensação de que um sahelanthropus tchadensis com acesso a lenços não faria pior serviço que aquele que nos é possibilitado actualmente. E a verdade é que eu não preciso assim tanto de melancias quadradas como preciso de deixar de parecer um sahelanthropus tchadensis sempre que ando constipado.   

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pedro, 17.10.07



Palavra de honra que desconheço que tipo de gente – também no que concerne à etnia de pertença, a qual me possibilitaria o acudir de epítetos pejorativos dessa órbita punida constitucional ou judicialmente (não me recordo, de momento, se é alguma sequer) – é esta cáfila pseudo-humana, mas, para serem capazes de efectuarem o que efectuam, muita ruindade lhes deve correr naqueles vasos sanguíneos. Não sendo ainda portador de grandes certezas, nem por isso deixo de ter as minhas infalíveis suspeitas. Barrunto, sem qualquer tipo de prova ou impressão, que a responsabilidade de tão holocáustico acto – o qual desvendarei quando parar de divagar – seja de um reduzido conjunto de mulheres superciliosas, como a Malu Mader, mas com muito má índole e extremidades secas. Joelhos, cotovelos; ombros, se também for possível dar esse tipo de secura na zona. Já que se tocou a questão das sobrancelhas, e da sua fartura, refira-se que há um apresentador da SportTv – supõe-se, e bem, que ele lá nos natais em casa dos tios diga que é “jornalista”, mas na verdade não passa dum apresentador que nem sabe dizer Fulham em condições – que arranja as sobrancelhas. Não sei o nome dele, não por autismo, mas porque, por cânone auto-imposto, só decoro nomes de pessoas que escrevem livros, marcam golos e fazem arte em geral (nada de dançarias e coisas em que, estando eu na plateia, me venham tocar); mas quando souber, o nome do sujeito, retornarei a este assunto, desmascarando o indivíduo em todo o meu esplendor a desmascarar indivíduos que arranjam as sobrancelhas ao ponto de eu, que sou eu, reparar nisso. Mantendo o raciocínio encadeado, posso também tornar público que o apresentador do magazine cultural da Televisão Independente, um tal de não sei quê com três nomes, veste camisa com dois botões abertos, opção que deixa acesso visual a um hediondo fio que, eu até nem queria blasfemar, mas é tal e qual aqueles fios de pinhões de pinheiro manso, daqueles justapostos por pedaço de guita alva, bem lixada de partir, até com os dentes; fio esse que é, como se sabe, comestível e best-seller em festas de paróquia. Ele usa isso. É isso ou aquele excrementício que se usa agora, missangas, seja como for, é uma parvoiçada que até se coaduna bastante com a envolvente. Ainda assim, reprovo. Não se brinca com a comida, disse-me a minha avó, ainda ontem, quando eu fazia castelinhos com o arroz que ainda estava a arrefecer e simulava uma operação a um ovo estrelado (a parte amarela), portanto, parto do imperativo moral que também não se deva vestir a comida. Relativamente ao desabafo com que encetei este pequeno, ainda que infinito em engenho, pertinência e acomodação, ensaio, estava-me a, está mais que visto, referir às pessoas que tornaram possível aquela que, em termos de ocorrências previstas pela pirâmide de Maslow para o mundo civilizado, é a décima segunda pior coisa que pode suceder: uma embalagem de Clusters com uma percentagem absurdamente marginal de coisinhas brancas. Diga-se, desde já, que nem costumo comprar Clusters. Compro, por defeito, Milfarin, após uma, como é de conhecimento julgo que particular, vida de Cerelac. Pouco importa agora escalpelizar esse outro fenómeno. A embalagem de Clusters que comprei apresentava, e passo a citar de cor com a ajuda deste papel onde escrevi os números, trinta e um bocados daquilo castanho (julgo que será uma espécie de trigo ou feno contraplacado) e seis bocados laminados de amêndoa para uma coisinha branca, a, unanimemente reconhecida como tal, alma de qualquer embalagem de Clusters. Portanto, tínhamos um trinta e um para um. Isto é a maior ladroeira de que há registo. Comprar Clusters é um acto de fé. É, até se abrir a embalagem, viver na ilusão de que aquilo trará muitas coisinhas brancas. É certo, e todos sabemos, que nunca traz muitas, mas o mínimo que se exige é que nos apresente um bom rácio. Digamos que uma proporção de quinze coisas castanhas por coisinha branca (entretanto, fideputa para as amêndoas, que a Páscoa ainda demora) é o mínimo admissível. E, mesmo assim, estamos perante um rácio muito franzino. O problema desta gente iníqua, da qual desconheço o rosto embora imagine as sobrancelhas, é pensar que se fica a rir de mim. Não fica. Devem estar à espera que as pessoas comam trinta e um bocados castanhos para conseguir comer uma coisinha branca dos Clusters. Não eu, que optei por fazer outra coisa. Primeiro, retirei todas as coisinhas brancas da referida embalagem e guardei-as num tupperware onde normalmente transporto arroz para aquecer depois num microondas. Posto isto, desloquei-me à loja e disse que aquela embalagem de Clusters não tinha coisinhas brancas. Fui de fato. De fato, qualquer reclamação é válida. Um gajo pode ter ficado sem um braço a comer um Bollycao, que se não for reclamar de fato, eles estão-se marimbando. Deram-me, como é óbvio e justo, outra embalagem. Nova, por estrear. Voltei a tirar as coisinhas brancas e, desta vez, pedi a um conhecido de fato para ir trocar também esta segunda embalagem. E assim sucessivamente. Já vou em quatro trocas e já tenho no tupperware cinquenta e duas coisinhas brancas. O objectivo é ter as suficientes para encher uma embalagem de Clusters, tornando assim inversamente infrutífera toda a maldade inerente à orquestração destes rácios indignos. Sou um anjo deste tipo de justiça. O ideal seria, uma vez cheia a embalagem de coisinhas brancas, ir comer uma bela taça de coisinhas brancas de Clusters para a frente dessa gente. Mas os anjos não são vingativos. Contudo, tenho constatado que, genericamente, me custa ter preferidos. É-me tão mais fácil e natural a detestação. Por conseguinte, detesto aquele gajo do Friends, o Ross.


* é eu receber uma boa maquia de euros neste NIB e de bom grado darei início a uma esteticamente irrepreensível sessão de parágrafos

Não tenho mais fotos e queria ver se conseguia meter um vídeo

pedro, 10.10.07

 

Uma coisa que as cantigas têm, entre si e relativamente a mim, é a circunstância de me darem vontades. Não são, evidentemente, querenças nascidas de associações primárias na estirpe de um “ah, aquela do Ai Timor se outros calam cantamos nós” dá-me vontade de cobrir completamente o Luís Represas de pioneses" (N.B: sim, estamos perante o plural mais idiota de sempre, mas algum tinha que ser; é verdade que o podia ser com menos margem de camelice, mas às vezes estas coisas são assim e não há que questioná-las ou fazer grandes alaridos teórico-práticos). Por cobrir de pioneses, não se entende a hipotética acção, de laivos circenses, de despejar uma grande balde azul de pioneses sobre o Luís Represas. Com efeito, tal execução seria, e em rigor, também cobrir de pioneses o Luís Represas, contudo, não é essa forma de cobrimento de que aqui se pretende idealizar a operacionalidade. Trata-se, por outra, de espetar pioneses no Luís Represas até que este fique completamente coberto destes pregos altamente adamados. A diferença é substancial, senão mesmo muito colossal. Pese embora, há que afirmar desde já que todo este exemplo bóia num mar de imbecilidade aparente e efectiva por duas ordens de razões. Porque, a), o Luís Represas é o tipo de individualidade que apetece sempre cobrir de pioneses, logo, não faz grande sentido que uma música em particular desperte esse sentimento; e, b), as vontades que as cantigas me incitam não são nada destas insipidezes com um nível de associação a, qual vassoura alegórica, roçar o solo da banalidade; não, são coisas bem mais rebuscadas, para pensar, com significados profundos, metáforas e coisas assim dessa têmpera e compleição. Sem mais delongas, esta canção em particular, que está naquele teledisco ali de cima, dá-me vontade de queimar coisas. Plásticos, coisas em vimes ou empalhados de uma forma mais genérica, pneus, casacos de ganga, pequenos móveis, sobretudo mesinhas de cabeceira, naperons, latas de laca, legumes, basicamente, tudo o que der. Raramente me deixam queimar coisas. Era assim em criança, continua a ser assim agora. A ideia “já queimávamos era isto, n’era?” nunca é acolhida com entusiasmo ou efusão. E eu sei, porque a uso como alternativa a quase tudo. Vá-se lá perceber um mundo que não recebe com efusão uma proposta destas. O cerne da questão, no que toca a identificar o problema central deste, chamemos-lhe conjunto musical, e nesta cantiga em concreto, é o facto da rapariga, ou matrafona de vestes normalmente associadas ao género feminino, apresentar, de longe e neste mítico dueto, a voz encorpada. Ao passo que o enfezado rapazola tem um falsete que faz parecer que os Bee Gees são o Darth Vader de ressaca. Por falar em Darth Vader, este ex-senhor de todo o mal das galáxias é um bom exemplo de reinserção na sociedade activa e liberta de gandulices. Depois de uma vida de iniquidades da pior espécie com naves e lasers, Darth cumpriu a sua pena e agora é o gajo que diz “this is cnn”, nos separadores da CNN. Não deve ser coisa para tirar menos de 200 contos por mês. Nada mau, para alguém com cadastro. Esta coisa, do duo com as vozes trocadas, destrói qualquer banda, porque confunde as pessoas. Não há necessidade de confundir as pessoas, sobretudo ao nível da dinâmica da percepção visual-auditiva. Serve isto também para lembrar que até já vi um concerto deste indivíduo de voz castrada, o Jimmy Somervile, ao vivo. Escandalosamente, não estava bêbado, pelo menos não no sentido comatoso do vocábulo, embora estivesse fora do país. O que acaba por ser a mesma coisa. Fora do país está-se sempre bêbado e sem se tocar num pingo de álcool. É o que o estrangeiro tem de bom. Não o livro do Camus, claro, mas esta referência sempre deu para fingir que até domino amplamente qualquer literatura mundial de referência ou não. Mais ou menos como quando finjo que a bola de bilhar que consegui meter no buraco depois de duzentas e trinta tabelas não foi ao calha. E vi o Somervile (ao vivo e a solo – ele, eu estava com mais pessoas), de certezinha totalitária, na sequência duma aposta que venci em toda a minha glória. Dizer isto, que já se viu aquele gajo dos Communards, o da voz fininha, que também foi dos Bronski Beat, mas a solo, não é o deus ex machina que julgava ser, assim em termos de conversas. Passa despercebido. Ou então dá chatices. O que é pena, porque é sabido que a única razão para se irem ver coisas é para depois se poder usar em conversas o facto de se ter ido ver, e, nesse sentido, Jimmy, só me serviste para ter que andar a explicar quem afinal és tu e conseguir, quanto muito, uns “ah, já estou a ver”. Mas é daqueles “ah, já estou a ver” fingidos, como os que eu uso quando m’explicam onde é que fica um sítio e dão referências “depois sobes e tens uma transversal que tem uma rotunda à direita, perto duma escola” e entes congéneres. Entretanto, e para ver se me passa este ânsia de queimar coisas, vou narrar uma história, impreterivelmente verídica. A primeira vez que joguei à porrada, naquela altura das nossas vidas em que o ludus marca forte presença na eterna arte da bulha, deveu-se a uma, até aí insondada, dificuldade em flexionar o verbo caber. Passava eu, do alto das minhas sete ou oito primaveras, de bicicleta numa zona que, devido a um indivíduo e a um carrinho de mão que norteava, estava agora ligeiramente mais apertada que o costume. O carrinho de mão forçou-me a aligeirar a velocidade, e eis que, do nada, o indivíduo, que, apesar de andar a empurrar carrinhos de mão tinha apenas mais um ano ou outro a mais que eu, atira-me um “não cabes?”. Eu cabia. Perfeitamente. E nem encarei aquilo como uma provocação. Mas levantaram-se logo uma série de obstáculos. Como é que dizia que cabia? Qual é a primeira pessoa do verbo caber? Como é que se diz? Sim, bem sei, agora e desde há uns anos – quatro –, que é caibo, mas não sabia naquele momento de tensão. E, claro está, se há coisa que não gosto de fazer diante de operadores de carrinho de mão, essa coisa é precisamente conjugações verbais desfeadas. As hipóteses que ecoavam na minha mente soavam mal. O cabo, o próprio caibo. Soava mal. Porque sim e por causa da pressão a exigir resposta pronta. Dizer simplesmente “sim” não era alternativa credível. Também não queria passar por uma daquelas pessoas que diz “sim” em vez de usar o verbo. Isto é, aquelas pessoas que, à questão “foste ali?”, e em caso afirmativo, respondem “sim” em vez de “fui”. Não queria, e não quero, ser confundido com esta gente, dos sins. Ora, não conseguindo decidir entre “cabo” e “caibo” e não sendo um solitário “sim” uma opção viável, lá tive que dizer que não. Como era óbvio que cabia à vontade, aquilo assumiu contornos de provocação e estágio de pré-cachaporra. Disto ao gesto foi um instantinho. Começámos a jogar à bulha. Nada de especial, só ficámos com as golas das camisolas um bocadinho mais largas. Lá nos cansámos e foi cada um à sua vida. Pronto. E a moral é simples e una. Ter a flexão verbal correcta na ponta da língua é meio caminho andado para não se meter em confusões e maçadas. De resto, e valha a verdade, não serve para muito mais.  

Luxúria

pedro, 03.10.07


Lato sensu – e estrear o que quer que seja com uma expressão em latim notifica logo, e muitíssimo bem neste caso, o leitor no sentido de “cuidado, pá, que este gajo sabe mais coisas que tu, se calhar até já leu mais de sete ou oito livros, e só dois ou três é que eram obrigatórios na escola” –, a luxúria pode-se definir como o desejo intenso e desregrado pelos prazeres do corpo. Por isto, por prazeres do corpo, e no sentido de se conseguir apurar com maior exactidão o que condena e o que é afinal isto da luxúria, de que trata e afins, a Igreja Católica, enquanto instituição e portanto aqui em letra capital, entende não mais que o desejo desordenado pelo prazer sexual. Está, convenha-se, aqui estruturada uma regra que prima pela elevado calibre de espirituosidade, e como sempre a igreja católica, ainda enquanto instituição mas agora sem letra capital porque acho que não vale a pena correr o perigo de fazer uma distensão no espaço que medeia o meu indicador e o dedo do pirete só para carregar na porcaria do shift, destaca-se pela posição extremamente reducente. Logo à partida, várias questões se levantam e, como tal, merecem ser tocadas e esfregadas com sofreguidão. No caso do género masculino, o toque e esfrega não costumam demorar mais que o tempo de desconto concedido na segunda parte de um jogo da bola. Ao passo que, no caso do mulherio, aquilo demora um prolongamento inteiro, um prolongamento inteiro e os penalties, ou até mesmo uma metade dum jogo com intervalo e tudo. Assim com’assim, a primeira questão a eriçar é o facto da Igreja Católica (agora usei o caps lock, mas é chato, ligá-lo para meter uma letra grande, depois desligá-lo para meter as outras pequenas e voltar a ligá-lo para voltar a meter uma letra grande e desligá-lo ainda uma outra vez para voltar a escrever as letras pequenas; não gostei deste sistema alternativo, sendo sincero) ter podido, ao longo dos tempos e se quisesse ser mesmo desmancha-prazeres, alargar a punição, isto da etiqueta de luxurioso, a todo e qualquer prazer que o corpo providencie. Mas não, e, assim, coisas como urinar quando se está mesmo aflitinho são prazeres que não contam para isto das luxúrias. O que é bom, porque eu, e infelizmente muito boa gente, urino mais vezes quando estou aflitinho do que tenho sexo com o que quer que seja, e incluo aqui pequenos electrodomésticos e seres vivos ou inanimados. Comatosos, nem por isso. Não sou nenhum tarado, se não contarmos com os sonhos ou aquela minha lista das coisas que faria se o mundo acabasse amanhã. Tem lá coisas que nem podem ser escritas, quanto mais consumadas. Mictar, e repare-se como sou evoluído ao ponto de não recorrer à brejeirice que fustiga o vocábulo “mijar”, quando se está aflitinho é, sem sombra de dúvida, um prazer corporal. Um que, é sabido, funciona mais numa dinâmica de alívio, mas nem por isso menos corporalmente prazenteiro. E, como a micção quando se está mesmo aflitinho, outros prazeres há que, valha-nos Deus, ninguém se lembrou de condenar para a eternidade. Acaba por ser uma sorte de dimensão consideravelmente assinalável, o facto dos Evágrios Pônticos, os São Tomázes de Aquinos, e outros que tais que vestiam sacos de serapilheira com uma corda a fazer de cinto e decidiam estas coisas no antigamente, não se terem lembrado de associar, derivado da tipologia de prazer proporcionado, o mictar-se aflitinho à luxúria enquanto pecado mortal, como aqueles daquele filme com um gajo que é amigo do George Clooney e depois assaltam o casino do Andy Garcia que andava a comer a Julia Roberts sem o Richard Gere saber. O mesmo s’aplica ao meter o pé numa passadeira rolante que está parada. Deixai-me, para quem me lê directamente do monte rural, necessariamente bucólico e essas coisas das poesias, e não espeta com frequência o pé numa passadeira da índole ali mesmo atrás especificada, dilucidar que fenómeno é este. Pousar o pé numa passadeira rolante é, para nós, citadinos que frequentam essa rabaceira que é a cidade de Lisboa, um acto mais que corriqueiro; bem mais banal que, por exemplo, registar-se, entre usuários que não possuem ligação relacional de qualquer ordem, uma sincronia mictória em urinóis públicos. Ou até, pronto, entre conhecidos, que isso também é raro, ao que julgo saber. Sincronia mictória é, enfim, o facto de se começar a expelir pela uretra no preciso momento em que outro usuário do urinol começou o seu próprio acto expelente. É ocorrência que acarreta um desconforto atroz, contudo, felizmente, não corriqueira. Não como meter o calcanho na passadeira rolante o é. É que, dia após dia, o corpo familiariza-se com o movimento, com a parte rolante da passadeira. E quando acontece pôr o pedúnculo em tapete rolante que, por intempéries técnicas ou só para chatear, não está a rolar, entra-se em todo um novo mundo de sensações vertiginosas e de deleite. Recomenda-se. Serve isto para destacar o facto da igreja católica poder ter sido ainda mais chata e ter abraçado, como luxúria e digno de castigo eterno, estes pequenos prazeres. Mas não. A igreja decidiu considerar ignominioso apenas o prazer supremo que o corpo providencia, o sexual. É que, pode-se afirmar com propriedade, o meter o pé numa passadeira rolante que está parada dá, quanto muito e com muito boa vontade, luta a um ou outro orgasmo. E a igreja deixa fazer isso. E deixa urinar quando se está aflitinho. Pois, estas coisas podem dar luta a alguns orgasmos, mas não chegam para os suplantar. Que um orgasmo, mesmo quando é mau, é bom. Um orgasmo é, nesse sentido, a pizza das sensações. Se a procura desgovernada e salivante pelo orgasmo fosse condenável, está mais que visto que o grau máximo do prazer sexual seria menos aprazível. Seria, não pizza, mas aqueles palitos de champanhe – claramente, o maior lobby existente a nível dos biscoitos. Aquilo até nem é mau, mas ninguém os ia querer a toda a hora e com dois terços das mulheres que vê na rua. A verdade, e é isto que, se não houver um paralelepípedo de calçada à mão, se deve atirar com força à cara dos devotos, é que se Deus não quisesse que nos enrolássemos e esfregássemos todos, a toda a hora, mesmo à mesa e enquanto dão notícias da guerra e da fome e isso no noticiário, Deus teria engendrado um qualquer sistema de prevenção. O mesmo é dizer, preventivo. Que previne. Até eu que, vá lá, embora apenas no sentido ritualista do termo, não sou Deus, conheço sistemas preventivos de eficácia intocável. Posso inclusive aludir a um deles. De cada vez que apetecesse e houvesse vontadinha, víamos um Paco Bandeira em biquini a fazer o limbo ou a tocar maracas. Isto ficaria cravado na nossa mente até que o desejo fosse à vida, o que, segundo um cálculo probabilístico que acabei de inventar, demoraria não mais que dois ponto noventa e seis segundos. No caso masculino, esta medida preventiva seria então sinónimo de ter um tão específico Paco Bandeira na sua mente a cada três segundos. Paciência, seriam os desígnios de Deus. Então e, pode-se sim senhoras perguntar que faz sentido, na antiguidade, quando não havia Paco Bandeira, como é que as pessoas se veriam divinamente livres do desejo galopante? Pá, seja de que época se trate, há sempre um Paco Bandeira ou equivalente. É dos livros. O Paco Bandeira pode assumir diversas manifestações físicas, mas é uma instituição perene, presente em todo e qualquer período histórico. Isto, há que dizê-lo, é inequívoco em todas as horizontalidades. A questão é que Deus não quer nada disso. Se Deus quisesse mesmo e fizesse questão disso, ficaria então apartada a consumação física dos actos que a luxúria compreende. Nem a luxúria de pensamento é condenável, porque, a ser, lá aparecia o Paco Bandeira em biquini a bater castanholas ou lá o que era. E, a mim, que quando oiço falar em gémeas siamesas, imagino logo como seria excitante se elas estivessem unidas pela boca ou que a boca de uma estivesse algures numa zona erógena de outra, não m’aparece o Paco a interromper a imagem mental. Mas tinham que ser gémeas giras e lascivas, nada daquelas entoalhadas do médio-oriente, a saber a pó. Nunca um meu pensamento de natureza luxuriosa, este ou qualquer outro, foi interrompido pelo Paco Bandeira em biquini. Conclusão? Só uma. É porque não é pecado. Se nem pensar nisso o é, muito menos seria a sua operacionalidade. E até progrido mais. Se fosse suposto eu nem sequer estar, neste preciso momento, a desenvolver um guião cinematográfico que acasala duas das mais fascinantes áreas da sétima arte – a pornografia e a fantasia; podendo-se, então, e finalmente, juntar pais e filhos à frente da televisão ou do ecrã do Cinebolso –, já há muito que teria recebido um sinal divino para parar com essas ordinarices. Se não é suposto eu escrever um filme pornográfico com unicórnios, já me tinham dado um sinal. No mínimo, já tinha apanhado o Paco Bandeira na praia ou assim. E só o vi duas vezes no Chiado. De casaco. E era em Maio, a temperatura já estava bem galante. Se ele estivesse de t-shirt, ainda era de se hesitar. Em suma, e para arrumar este assunto de uma vez por todas, Deus vê tudo o que se passa cá em baixo. E é preciso lembrar que Deus não tem Internet. Nós somos a Internet de Deus. Vamos agora providenciar a Deus uma Internet sem sexo de todas as maneiras e feitios? Uma Internet sem sexo e pornografia? Isso é na China. Deus merece uma ligação em condições.


 

Os outros seis:
Inveja
Orgulho
Ira
Gula
Avareza
Preguiça