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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

[fazer de conta que está aqui um título muito, etc., bom]

pedro, 31.03.08


Quando ocorre estar postado numa fila, consigo identificar claramente a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” a mais de não sei quantos metros e com uma margem de erro tão absurda, mas tão absurda, que era escusada a própria menção de uma margem de erro. Esse tipo de criatura, a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?”, existe, apenas e só, no sentido da fomentação de sentimentos que se podem descrever como implosões interiores ao nível dos nervos, basicamente e assim. Uma vez que o homicídio em própria defesa ainda é, infelizmente, um campo muito limitado e apenas aplicável em situações bastante específicas, há que lutar contra estas criaturas com as armas possíveis. Ora, partindo-se do óbvio pressuposto de que a fuga ao extremo incómodo que a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” promove junto do receptor deve muito a uma identificação prévia da referida criatura, a importância dessa faculdade (ver primeira frase, se já se esqueceu qual é, seu monoceronte com um intervalo de atenção nulo) banha-se então, e declaradamente, num mar de incontestabilidade. Embora componente decisiva do processo, não basta a mera identificação da pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” a largos metros de distância. É necessária a aplicação imediata de uma postura de combate à pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” e à sua grande arma, precisamente o “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?”. Pessoalmente – e, relembro, depois de identificada a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” –, socorro-me de duas tácticas, que passarei a descrever. Uma requer que se tenham vestidas umas calças com fecho-éclair, a outra não requer nada, pelo menos em termos de equipamento específico. Em relação à primeira, basta referir o seguinte: assim que identificar a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?”, limite-se a baixar a cabeça e finja-se entretido a abrir e fechar o seu fecho-éclair. A pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” não ousará incomodá-lo, é garantido. A outra opção passa por centrar o olhar no seu próprio nariz, dando a nítida sensação de que é muito estrábico ou uma coisa dessas. A minha experiência diz-me que ninguém pergunta nada a estrábicos, sobretudo a quem aparente um nível de heterotropia que seja visível a uma distância considerável. Deve ser fenómeno intrinsecamente relacionado com o facto de essa gente parecer maluquinha, embora até existam alguns que andam de fato e têm estudos (ainda que nunca acima de licenciatura). Isto do estrabismo ciclópico, é, ao nível destas dinâmicas, equivalente a ter as calças ensopadas em urina – própria ou não –, uma suástica tatuada na testa, uns óculos escuros sem uma das lentes, etc., coisas dessas. Assusta, ninguém lhes pergunta, nem pede nada. Ambas eficazes, estas tácticas têm os seus pontos menos positivos. No caso da do fecho-éclair, é preciso estar com calças que possuam esse tipo de peça. Sabendo-se de antemão que setenta e oito por cento das esperas em filas se efectuam usando calças de fato-de-treino, é elevada a probabilidade de não termos o fecho-éclair necessário. Na outra táctica, o problema assenta no facto de que centrar os olhos no nosso próprio nariz fazer dor de cabeça passado um bocado; o que potencia a plausibilidade de você deixar de concentrar exclusivamente o olhar no seu próprio nariz antes da pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” reparar que você parece um daqueles malucos estrábicos. Se a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” não reparar que você parece maluco, o mais provável é você levar com o “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” dela. Qualquer uma destas tácticas é duma eficácia avassaladora, mas há que chamar a atenção para o facto de não deverem ser usadas em simultâneo, visto que é óbvia a perigosidade de manobrar o fecho-éclair tendo-se o olhar centrado no próprio nariz. Desde que soube que tinha a faculdade de identificar a pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” à distância e aplicar subsequentemente uma destas tácticas de defesa, apenas por uma vez fui derrotado por uma pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?” e tive que a deixar passar à minha frente para perguntar só uma coisa. Mas há que salientar que essa pessoa ““olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?”, quase no preciso momento em que a identifiquei como uma pessoa “olhe, desculpe, posso passar à sua frente, que vou só perguntar uma coisa?”, se assoou à Futre (ver Nota Bene), eventualidade que me desconcentrou por completo e impediu a aplicação de uma das duas excelsas tácticas de defesa que tornei aqui públicas. Pessoas que se assoam à Futre são invencíveis nestas coisas dos conflitos sociais.

 

N.B.: Assoar-se à Paulo Futre é um movimento desenvolvido pelo ex-internacional português com o mesmo nome. Criado algures no encontro Portugal x Escócia de qualificação para o campeonato do mundo de 1994, este movimento exige, como condição prévia, um acumulação substancial de mucosidades nas fossas nasais, o vulgo “nariz muito entupido”. Satisfeita essa condição, a pessoa assoar-se-á à Paulo Futre, tapando uma das narinas com o dedo e fazendo uma força tremenda, tentando fazer passar ar pela narina livre (se tiver o nariz demasiado entupido e fizer muita força, poderá morrer devido a veias na cabeça explodirem). Se tudo correu bem, o indivíduo terá agora um longo fio de mucosidade pendurada, desde o nariz até ao solo, sendo que, para a fazer cair, não poderá usar as próprias mãos, camisola, ou o que for, mas, isso sim, recorrer-se apenas da locomoção; i.e., correr até que o longo fio de mucosidade caia naturalmente. Paulo Futre conseguia que tal sucedesse em duas ou três passadas, em corrida ligeira, mas acredita-se que o cidadão normal já o consiga fazer em cerca de sete, oito passadas. As condições climatéricas ideais são, evidentemente, ventos fortes e contrários. Como é ainda mais evidente, Paulo Futre não precisa de condições climatéricas ideais.

Sai daqui, que me fazes electricidade estática

pedro, 20.03.08


Antes que m’esqueça de o fazer, adianto desde já que, no meu supermercado, a mulher da secção da charcutaria (ou lá que coito de nome tem aquilo assim em termos mais técnicos) só não bufa ligeiramente – que fique subentendido que é em manifestação de desagrado, espero não ter que explicar esta questão dos bufares – quando peço acima de quatro fatias de queijo e respectivo fiambre, ou vice-versa. Se peço uma, bufa, se peço duas, bufa, se peço três, bufa, se peço quatro, bufa. Com cinco, já não bufa, mas também nunca lhe notei qualquer tipo de entusiasmo. O que também faz sempre é atirar um “é só?” para cima de mim, como se o que acabei de pedir fosse sempre pouco. Levo pouco porque não sei quanto tempo dura o queijo e o fiambre. Tenho-me como indivíduo precavido, sobretudo desde que, em tempos, comprei uns quilos de bananas em promoção. Ainda assim, ando a juntar dinheiro para tentar perceber até que ponto ela diz “é só?”, embora, logo à partida, me pareça que, se eu lhe pedir cinquenta fatias de queijo e fiambre, um “é só?” vá parecer desadequado. É quando como eu chego mais de duas horas atrasado a um encontro qualquer e as pessoas, quando me vêem chegar, dizem “já aí vem o Pedro”. Esse “já” é tão irónico, mas, enfim. Vamos esperar para ver como corre esta contenda das cinquenta fatias de queijo e fiambre. Quem achar que faço poucos parágrafos – sendo “poucos” sinónimo de “nenhum”, como é sabido –, pode imaginar que fiz um aqui e esta frase não existe. Prossigamos agora para outras matérias, com licença. Um exemplo paradigmático do expectável, ainda que por ora pouco visível, domínio da máquina sobre o homem, reside na seguinte e corriqueira dinâmica [com a qual, decerto, todos nós estaremos familiarizados]: no decorrer de um banho, a água quente conhece um considerável período de fluxo gelado porque, apenas e só, o esquentador se resolveu desligar sozinho. Perante isto, afirmam diversas entidades (o manual, a caixa e até a pessoa que sofreu com a decisão do esquentador em se desligar sozinho, entre outras) que o aparelho é “inteligente”. Em contraponto a este tratamento já de si levemente incompreensível, surge aquele que é facultado aos humanos que, mesmo quando inadvertidamente, têm o azar de parar a água quente a alguém lá em casa que estava a tomar banho, seja porque puxaram o autoclismo ou se meteram a lavar a louça de quinze dias, que entretanto foram acumulando. Com efeito, essa pessoa – chamemos-lhe, meramente para efeitos de etc., “eu” – que inocentemente interferiu com a temperatura da água do banho é, automática, invariável e inapelavelmente, apelidada de “estúpido”, adjectivação essa que, não raras vezes, vem acompanhada de um “da merda” que mais não faz senão ilustrar ainda mais um discurso já de si bastante perceptível. Até porque costuma ser aos berros e oriundo das goelas de quem acabou de levar com água gelada nas costas, ombros e cabeça (quase sempre). Portanto, temos, para acções de desfecho exactamente idêntico, reacções amplamente distintas. Uma para o esquentador, outra para o tal “eu”, um humano. O esquentador é “inteligente”, ao passo que “eu” já sou “estúpido da merda”, no mínimo. Quando analisada à luz da eterna questão da intenção, a diferença de tratamento poderá fazer algum sentido. O esquentador teve intenção de desligar a água quente a quem tomava banho, ao passo que “eu” não tive. Transporte-se, para um maior imediatismo a nível de compreensão de V. Exas., esta dinâmica para o concurso “Quem quer ser milionário?”; onde, conjecturemos, temos dois concorrentes cujo desfecho foi idêntico: escolheram a resposta certa. Porém, um deles fê-lo certo de que aquela seria a resposta correcta, enquanto que o outro disse ao calha (são quase sempre gajas). Aos olhos de todos os que acompanham o concurso, o primeiro é inteligente e o segundo é um burro que vive à base de fezadas. Cá está de novo: para acções de desfecho igual, reacções antagónicas. A intenção parece assumir carácter decisivo. Seria, então, de prever que, assemelhando ainda mais a minha acção da do esquentador, i.e., juntando-lhe o factor intencional, me iriam catalogar também de “inteligente” em vez de me metralharem com um “estúpido da, etc.”. Acontece que quando, propositadamente, faço parar a água quente do banho de alguém, é praticamente tudo igual e, ora bem, ninguém me chama inteligente. De resto, a variação foi mesmo mínima, para não dizer inexistente, tirando uma vez, que ouvi “mas tu andas a gozar com esta merda ou quê?”, o que seria de facto, e com muito boa fé, uma variação relativamente a reacções anteriores, mas não tardou até se complementar a ilusória inovação com o habitual “ó estúpido da, etc.”. Não acho justo este desfasamento em termos do conceito de inteligência entre esquentadores e pessoas, basicamente. Deixando umas breves linhas sobre um assunto em nada relacionado com o anterior, refira-se que gostaria de, ao rol de entidades que anseio por ver abatidas num feriado nacional – se possível o dez de Junho que me agrada o solinho no lombo –, as pessoas que fazem questão de abrir o chapéu-de-chuva em locais sobrepovoados. De resto, o costume.