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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Capas que dificilmente serão piores que a música, mas é possível (III)

pedro, 22.09.05
Toda a gente sabe que, atingindo-se uma certa idade, o sítio onde mais vezes se encontram amigos é na página de necrologia do jornal regional. Por incrível que pareça, em maior número que nas salas de espera dos consultórios médicos. E, por ainda mais incrível que pareça, em maior número que junto àquelas barreiras de metal com um buraco para os velhos puderem ver as obras de qualquer construção. É por essas e por outras que eu não leio livros bons, não vejo filmes bons, nem oiço música boa. Quero ter alguma coisa de jeito para fazer quando for velho. Ver obras não me seduz por aí além. Não sei, deve ser um gosto que se adquire com a idade. Como os torresmos, as caras de bacalhau ou fazer aquele som ‘tshck, tshck’ que os velhos fazem com os dentes durante horas depois de qualquer refeição. E quem é que teve a ideia de fazer os buracos nas barreiras de metal para os velhos puderem ver as obras? Algum empreiteiro começou a ficar assustado com a insatisfação dos idosos perante as barreiras que lhes impossibilitava um visionamento correcto? A massa idosa começava a ficar impaciente e anunciava-se um banho de sangue? Aposto que os velhos até dão dicas aos pedreiros. Muito gostam eles de dar dicas. “Olhe, martele ali agora que aquilo tá solto e vai cair tudo’. ‘Olhe, é melhor não deixar os ‘tijóis’ à chuva que estragam-se’. E depois dizem sempre ‘eles não percebem é nada disto, ‘hóme’!’ para o amigo do lado. E vão à vida deles. Ver mais obras.

Freddie Gage é um padre Baptista. Não é ‘o’ padre baptista. Baptista não é o nome dele, é a sua fé, a sua seita. Gage é que é o nome dele. Aliás, até já tinha dito isso. Foi logo a primeira coisa que disse. Chamam-lhe ‘o profeta do submundo’. Um nome porreiro, à super-herói. Ou à vilão. Dá para as duas coisas. Fica bem em ambos os cenários. Pode-se ouvir um apelo desesperado como ‘A cidade está à mercê de um milionário mutante e só o Profeta do Submundo nos poderá salvar!’, ou um ‘Vou ter a minha vingança, Batman… ou não me chame eu ‘Profeta do Submundo!’ acompanhado de uma gargalhada maquiavélica em fuga. Resulta bem das duas maneiras. Quando era mais gaiato, venceu a dependência das drogas e, por isso, agora acha que é especial, que lhe deram uma segunda oportunidade lá do céu, e resolveu ser criativo e ajudar o próximo. Viu a Luz. O costume. Dá sermões. E grava discos com sermões. Não é coisa para passar numa festa, digo eu. Um bocado pesado e exige a atenção que um disco como, por exemplo, a banda sonora do Robin dos Bosques dispensa. Aquele com o Kevin Costner e com a música do Bryan Adams, que até o vídeo é na floresta e eles estão lá a cantar e até há uma parte que temos a perspectiva de uma flecha a ir contra uma árvore muito depressa.

A capa mostra-nos que, muito antes das bandas com eyeliner e letras "oh, ninguém gosta de mim", já existiam bons discos para introspecções e para alimentar depressões. Freddie está agachado perante a lápide de um amigo. Levou o seu melhor fato branco, excepto as calças que estavam para lavar. O branco suja-se muito. Sobretudo nas perneiras. E Freddie, como bom padre que é, sempre deu colo a muita gente. Ainda conseguiu levar as suas botas de fada. Ou à Bee Gees. Seja lá o que for, parece ser o calçado mais adequado para pisar a relva de um cemitério. É uma coisa leve, mas ao mesmo tempo formal e respeitadora. Parece admirado com alguma coisa que está escrita na lápide. Costuma acontecer a quem deambula por cemitérios a ver se reconhece os nomes cravados na pedra. Também pode estar a fazer as contas para perceber com quantos anos é que este seu amigo morreu. Tem na mão um livro com uma capa vermelha. Com certeza, algum livro de feitiços que lê de trás para a frente enquanto mutila galinhas e gatos vadios. A editora é a ‘Rainbow’, ou, em bom português, a ‘Arco-Íris’. Um nome alegre, colorido e vivo.

Numa palavra, de maricas. A editora deve ter uma boa secção de Marketing. A sonoridade do disco é, claro, monótona e o tom moralista não disfarça a falta de instrumentos, ou, de uma forma mais directa, de música propriamente dita. Vai daí, a ‘Arco-Íris’ decide apelar ao sentimento das pessoas. A estratégia é velha e por de mais conhecida. O pirilampo mágico é foleiro. Há centenas de bonecos mais giros para pôr no tablier do carro ou no monitor do computador lá do trabalho. Mas as pessoas compram porque é para ajudar outras pessoas que precisam. Também não há uma única pessoa no planeta que goste sinceramente do ‘We are the World’ dos ‘USA for Africa’. Sejamos francos, por muita boa vontade que tenha havido, não é qualidade que os consumidores esperam de uma cantiga interpretada por todos os irmãos Jackson, o Lionel Ritchie, o Dan Aykroyd, o Stevie Wonder e o Al Jarreau. Tudo ao mesmo tempo, e, haja dó, durante mais de sete minutos! Só foi um sucesso porque as pessoas queriam ajudar África a matar a fome e as moscas. A verdade é que todos os amigos do senhor Freddie Gage já morreram. Todos! Sendo assim, o mínimo que podem fazer por ele é comprar o disco, seus ingratos a quem a vida corre bem.

Outras capas:
Heino
Richard & Willie

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