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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Assim cenas

pedro, 26.04.07











Isto pode abismar a menos abismável das existências, mas a verdade é que nunca acabei um Sudoku acima daquele que corriqueira, mas também tecnicamente, tem sido identificado como nível de dificuldade: fácil. Este fácil é, diga-se de passagem, o fácil mais modesto com que alguma vez me deparei. Talvez o fácil do “é como encontrar um trevo na tromba dum elefante” se lhe chegue perto. Que meretriz de melodia, hã? Há semanas que não penso em mais nada, com isso a ecoar todo o santo dia na minha cabeça. Ora, os dois ou três fáceis que despachei no Sudoku deram-me para ocupar qualquer coisa como, e estimando assim bastante por alto mas sem deixar o nível de precisão que faço questão de deixar sempre em tudo o que orquestro, cerca de algum tempo. Mais coisa, menos coisa. A verdade é que nunca fui especialmente bom nestas febres que, sabe-se lá porquê e seguindo que critérios, resolvem, de quando em vez, abalroar o país. A propósito, não sei até que ponto isto é reconhecido institucionalmente, mas diga-se já, aqui e agora, que fui eu a lançar a febre do Tetris, que varreu o país de alto a baixo aqui há coisa de quinze anos. Um bocadinho menos, talvez. E até apresento dados concretos, sob a forma de datas inequívocas. O boom do Tetris portátil sucede no início do ano lectivo mil novecentos e noventa e três/mil novecentos e noventa e quatro – um ano curiosamente absolutamente lastimoso do ponto de vista que realmente interessa, o futebolístico. Invulgar, isto de ter recorrido a três advérbios num curtíssimo período frásico. O que é mau sinal. Eu tive uma professora que açambarcava tudo o que dizia ou escrevia com advérbios. E aquilo metia nojo. Metia nojo de tal forma que ganhei um carinho especial, sendo carinho especial um eufemismo sublime para repulsa doentia, pelo “efectivamente”, advérbio que a senhora professora bramava com uma frequência lancinante. Lembro-me que havia um colega na turma que tinha dificuldades com os advérbios. Era o Pascoal. Até ver, foi o único Pascoal que conheci na vida. Cajós também só conheci um. Em compensação, conheço dois Gil Vicente. São vizinhos e tudo. Sim, incrível, sei disso. Certa vez, com a boa fé que me define, ao procurar ajudar Pascoal, informei-o que a melhor forma de saber o que eram advérbios era pensar que esses gajos eram malta para acabar todos em “ente”. Ele processou a informação e eu, admito, fiquei deveras orgulhoso quando o Pascoal, desafiado a enunciar um advérbio pela professora viciada em advérbios, saiu-se com um, e isto é a mais pura das verdades, “Pepsodent”. Quanto àquilo do Tetris, das datas e assim o caraças, e tendo o ano lectivo de noventa e três/noventa e quatro como referência temporal associada ao aumento súbito dos utilizadores do jogo em questão, tenho apenas a dizer que, corria o mês de Maio de mil novecentos e noventa e três, e eu já tinha um Tetris portátil. Comprei na feira, em vez dum boneco. Foi por mero acaso, porque, por sistema, eu comprava sempre um boneco. Só que, nesse ano, eu ainda estava queimado devido a acontecimentos do ano transacto, período em que comprei um Rambo com uma parafernália nunca antes vista em Rambos, de feira ou não, de armas e adereços bélicos. Sim, bazuca, pistola, granadas, faca grande, um míssil, e, espectacularmente, até uma besta aquele John R. tinha. O pior estava para vir. E veio depois d’abrir a caixa. Não é que aquele Rambo não era articulado? Nem mais, não passava de um boneco inerte. Nem um bocadinho maleável, o sacana era. São estas cenas que deixam marcas para a vida. Sãmente, decapitei-o com o ferro da solda do meu pai. E a minha tia, quando soube disto, e pela segunda vez em poucos meses, aconselhou a minha mãe a meter-me num psicólogo. Porque, e citando directamente a fonte familiar, “desculpa lá, mas cortar a cabeça a bonecos com um ferro de soldar não é normal”. A mim também não me parece normal que ela use camisas com aqueles ombros de esponja desde que a conheço, considerando que aquilo saiu de moda em mil novecentos e oitenta e seis, mas não é por isso que vou dizer à minha avó para a meter num psicólogo. É que os conselhos desta minha tia sempre foram formidáveis. Uma vez ouviu-me a pedinchar uma Mega Drive ao meu pai e, com a maior das naturalidades e com uma expressão própria de alguém que pensava mesmo que me ia satisfazer plenamente, confronta-me ela com um “porque é que não brincas antes com um pião?”. Um pião. Como substituto funcional da Mega Drive. Acho que foi a primeira vez que me saiu um “foda-se” num baptizado. Entretanto já lhes perdi a conta. Enfim, são feitios. Daí que, no ano seguinte, lá tenha comprado um Tetris em vez dum boneco. Depois levei-o um dia para a escola, foi um sucesso, e no ano lectivo seguinte toda a gente tinha um. Eu não era nada d’especial no Tetris. Era muito direccionado para uma só estratégia, a de ir fazendo um muro muito alto, esperando por um daqueles paus compridos para fazer logo quatro linhas duma vez. E às vezes oito em duas jogadas, se viessem dois paus compridos seguidos. Só que, lá está, esses paus compridos nunca vinham quando deviam. E eu ficava com um muro gigante até cá acima. Sempre à espera da peça pau comprido, até me lixar bem lixadinho. O Pascoal é que até s’ajeitava no Tetris. Às tantas, até é um virtuoso do Sudoku. Pormenor que não deixa de ser curioso. Porque o gajo, o Pascoal, possuidor, como se percebeu, de competências adverbiais inegáveis, conseguiu ainda ser o único indivíduo que convenci a jogar roleta russa com um agrafador. Um daqueles tipo pistola, nada de agrafadores maricas de escritório. Portanto, sim, já vi um gajo com um agrafo perto do sobrolho, já. Foi o Pascoal, que também foi rapaz para, durante todo o período de convívio com a minha individualidade, jurar a pés juntos que tinha ganho ao braço de ferro a um homem que era lobisomem. Um montesino qualquer lá da aldeia do avô dele. A vida é assim. Cheia de ironias.

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