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Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Olhe que não, shô Doutor! Olhe que não...

Só para isto parecer uma coisa com actualizações frequentes e outros adjectivos que façam sentido

pedro, 18.01.08


Porque a coerência é uma arte, e eu um artista de estripe picassiana vezes infinitos vezes infinitos, é com regrado orgulho que me vejo seguir, em parte, a dinâmica iniciada na comunicação a esta imediatamente anterior. De sorte que cá deixo, em profundo detalhe, ou – optando por uma retórica menos polvilhada de intrujice – em detalhe duma profunda mediania descritiva, o pior dia do ano transacto. Não em termos mundiais, humanos ou o que for. Apenas o meu. Temos então, em tão honrosa categoria, aquele dia em que, finalmente e após inúmeros – cerca de três, seguramente não mais de quatro – impulsos conscienciosos nesse sentido, resolvi presentear um ceguinho do metro com uma quantia monetária: vinte e poucos cêntimos, em moedas das pretas – algumas de cinco, portanto, nada mau. Tomada a decisão, e como expectável, foi-se acercando o cego, curiosamente o que menos encontro nestas lides. Cada vez mais próximo o feliz contemplado, procuro, no bolso das moedas pretas, um punhado desses belos exemplares. Porém, havia que lembrar que o cego não consegue subentender que o vou presentear, uma vez que não me vê a meter a mão no bolso. Neste aspecto, perdem muito para os romenos com acordeão, que esses vêem um indivíduo meter a mão no bolso, percebem que vão receber por terem tocado o “Cheira a Lisboa” ou uma música de Natal [isto é mais quando é Natal – e, note-se, chateiam-me estas cristalizações musicais a períodos temporais específicos; não pode, pergunto eu, um indivíduo ter vontade de ouvir um “Noite Feliz” em Agosto? Pronto. Fica a pergunta no ar, que entretanto já usei uns parênteses rectos, um traço, um ponto e vírgula e um ponto final, e, se calhar, não sei, esta intercalação às músicas de Natal tocadas por acordeões romenos já vai longa e depois é confuso para as pessoas] e param em frente à pessoa, expectando a sua pequena gratificação pelo momento musical e tradicional, e concomitante, boa disposição. Quando um desses romenos – e, amplo realce para este facto, só não fiz isto quando o Niculae jogava no Sporting – passa por mim, eu meto sempre a mão no bolso, finjo que estou a tentar apanhar uma moeda que está mesmo no fundo da algibeira e, passados uns, deixa cá ver assim por alto, trinta, quarenta segundos, retiro a mão, devagarinho, para criar suspense. O romeno espera, sorridente. Na prática, esperou que a minha mão, já fora do bolso, e sem moeda nenhuma à vista, mudasse uma música no meu leitor de aúdio digital, aparelho que dava para comprar um prédio em Bucareste. Isto é o que eu lhes digo. “Olhe qu’isto dá para comprar um prédio na tua terra, em Bucareste.” Em Bucareste talvez não, que as capitais são sempre sítios onde a especulação imobiliária grassa e arrasa, mas daria, seguramente, para uma faustosa moradia em Timisoara. O romeno vai-se embora, mas, durante um bocadinho teve esperança. Esperançar as pessoas é, em qualquer ponto do globo, bem melhor que lhes dar dez cêntimos, e acaba por seguir mais aquela dinâmica do provérbio chinês do não dês um peixe a um homem, ensina-o antes a pescar. Se bem que ensinar um homem a pescar é coisa que pode demorar. Há homens muito burros e, se pescar é chato, ensinar a pescar não deve ficar muito longe disso. Portanto, se estiver com pressa, acho que é de deixar o peixe. Ele que aprenda a pescar sozinho. Ou então coma carne, que não tem espinhas. Entrementes, e com tanto a acontecer em simultâneo, já me perdi. Vou deixar agora um espaço, voltar atrás para ler onde ia, e dar seguimento a isto.

 

O cego não me viu meter a mão no bolso, percebi logo que o ia deixar passar se não fosse mais expedito e, derivante dessa pressa que m’assaltou de rompante, deixei cair uma moeda de dois euros que, não sei a que propósito, estava no bolso das moedas pretas. Não mais recuperei essa moeda de dois euros, que caiu naquele folhe da porta do metro e, daí, sabe-se lá para onde algures na linha. Não tive o ataque de fúria que teria naqueles dias em que não tomo umas coisas que se chamam sedativos, dei as moedas pretas ao invisual e perguntei-lhe se não tinha ouvido uma moeda cair. É que, e uma vez que estão privados da visão, os cegos têm um outro sentido muito desenvolvido. Super-sentido, é o nome deste fenómeno. Podia ser que este cego tivesse super-audição. Mas não tinha, que ele só disse que sim, que lhe pareceu ter ouvido qualquer coisa. Se tivesse super-audição, tinha ouvido bem mais que isso. Se calhar era um cego com super-tacto, que dá jeito para sentir seios sem chegar a tocar na camisola. Ou super-paladar. O super-paladar traduz-se no facto de, por exemplo, quando se come um frango, esse frango saber mesmo, mesmo, mesmo, mesmo muito a frango. Lá lhe disse que aquela impressão de ter ouvido cair qualquer coisa estava relacionada com a queda efectiva duma moeda de dois euros, tendo, em seguida, explicado ao senhor as circunstâncias que provocaram tamanha perda. Findei a minha exposição descrito-argumentativa frisando que, moralmente, ele me deveria dar pelo menos um euro, uma vez que eu tinha perdido uma moeda de quatrocentos paus por causa dele. Não aceitou, e diz que isso é apenas um esquema para sacar duzentos paus a cegos como ele. Eu ainda lhe mandei a boca que s’impunha, aquela do “olhe, sabe, eu nem vou insistir mais, que o pior cego é aquele que não quer ver, homem” e retirei-me, deixando o cego, e porque não s’apercebeu que eu havia ido à minha vida seguindo outra direcção que não aquela para onde ele estava virado, a praguejar impropérios na direcção de outras pessoas que não eu. Desde esse dia, decidi que não mais daria uma moeda a cegos, tendo ainda, com os nervos, chegado a casa e apagado os mp3’s que tinha do Stevie Wonder. Tenho saudades do "Songs in the key of life", ou lá o que é, mas é o tipo de saudade bastante controlável. Como ter saudades de farinheira no cozido à portuguesa. É mais naquela dinâmica de até se poder ter saudades, mas saber que a farinheira não é nenhum chouriço. Ou uma carne de vaca. Nem uma morcela, quanto mais. É também, e sobretudo, impressionante como tenho sempre fome.


P.S: Isto era suposto estar ilustrado por uma fotografia, mas não está a aparecer, sabe lá Deus porquê. Este post scriptum sairá daqui assim que a fotografia em questão der sinal de vida ou, bastante mais provável, eu me lembrar passado demasiado tempo.

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